Sob uma análise da obra de Bourdieu, entende-se o direito como uma expressão dos conflitos externos da sociedade. Por esse motivo, não é possível reconhecer a independência do direito, uma vez que ele tem completa relação com os movimentos sociais externos e sofre alterações por parte da sociedade. Esses conflitos são travados por uma luta simbólica, ou seja, uma disputa de interesses e ideologias representadas por diferentes grupos. Ainda sim, o campo jurídico é reflexo da classe dominante, os detentores do poder simbólico.
De fato, o direito positivado, que hoje conhecemos, é igual para todos. O que difere é a sua aplicação, a forma como uma norma é interpretada à luz dos interesses de outrem. Portanto, a hermenêutica é uma ferramenta poderosa dentro do campo jurídico e a forma como é utilizada depende de quem a usa e, muitas vezes, da posição ocupada por esse. Nesse sentido, a leitura é fundamental para que o espaço dos possíveis seja realmente possível, pois é por meio dela que se adquire um dos principais capitais simbólicos - especificamente o conhecimento, necessário para interpretar o direito.
Nesse sentido, a interpretação vincula-se à dinâmica da luta simbólica dentro do campo jurídico, pois os intérpretes das normas definiram o "veredicto" (decisão), que nada mais é do que o resultado dessa luta.
Na perspectiva de Bourdieu, o capital significa muito mais do que aquilo que é material ou econômico, capital é representado também pelos recursos existentes nos indivíduos que ocupam posições diferentes em cada campo. As relações sociais, o status, o conhecimento, tudo isso pode ser considerado um capital simbólico e, quando acumulados, tornam-se membros do poder simbólico.
No atual contexto pandêmico, para proteção da vida, algumas cidades decidiram estabelecer decretos que proibissem o funcionamento de determinadas atividades. Esse foi o caso da cidade de Franca, no interior do estado de São Paulo. O Decreto Municipal nº 11.217 proibiu, dentre outras, a atividade de lotéricas e correspondentes bancários. Entretanto, apesar do decreto, alguns insistiram em abrir seus comércios, o que resultou, em uma dessas, no processo de Mandado de Segurança Cível por parte do dono de uma lotérica.
Em um dos trechos da decisão judicial é mencionado as garantias constitucionais como argumentos contra o fechamento de comércios, mesmo que sob o pretexto de salvar vidas. Aqui já se pode observar a interpretação do texto constitucional em favor da abertura, é o famoso malabarismo jurídico. Durante todo o processo é possível notar a utilização da hermenêutica, inclusive no ato de interpretar o próprio contexto social, não só a lei. Quando é citado, por exemplo, que “após um ano de empobrecimento da população em razão da quarentena”, o distanciamento social (quarentena) é posto como o problema principal, ignorando toda uma realidade pandêmica que foi negligenciada.
A pandemia de Covid-19 trouxe diversos desafios e, sem dúvidas, quem mais sofreu com as consequências dela foram os mais pobres e vulneráveis. Entretanto, atribuir o empobrecimento da população à quarentena - uma medida necessária para diminuir a transmissão do vírus e evitar mortes - é ignorar que o compromisso do Estado para com a população, de manter a dignidade e a saúde do povo, foi negligenciado em diversos momentos. O baixo valor do auxílio emergencial disponibilizado pelo governo, a propagação do negacionismo científico, o aumento excessivo do preço de produtos essenciais, entre outros elementos que, infelizmente, possibilitaram o empobrecimento da população.
Para a formulação de uma interpretação, seja ela processual ou não, não se leva em conta apenas o poder simbólico. Bourdieu explica a existência do habitus, tudo aquilo que é absorvido dentro das classes sociais ou que o indivíduo apreende com os outros campos e classes com os quais ele tem contato. O habitus, portanto, corresponde às vivências e ao ambiente em que o ser se encontrou algum dia. A partir disso, cria-se uma visão de mundo característica e única de cada pessoa. O intérprete também carrega consigo essa característica e isso resulta na dinâmica da luta simbólica.
Tomando o veredicto como o resultado da luta simbólica, a decisão judicial do processo em questão demonstra que o interesse econômico se impõe dentro do campo jurídico, muitas vezes. Segundo a análise da obra de Bourdieu, isso faz parte de uma lógica, visto que o campo econômico é o mais importante, afinal, ele condiciona os conflitos existentes dentro dos outros campos. Mesmo durante uma situação de calamidade na saúde pública, a economia sobrepõe a vida da população. E, utilizando a própria constituição e fazendo uma interpretação da mesma, a saúde é um direito da população, porém, isso não se limita apenas a prestação de serviço por meio de hospitais e upas, mas também ao zelo pela saúde dos cidadãos, principalmente em meio a uma pandemia que poderia ter milhares de mortes evitadas através do respeitos as medidas protetivas necessárias.
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