Magistratura brasileira, feminismo
e apologia a estupro durante trote universitário: sob a luz de Bordieu.
Durante um trote na
UNIFRAN, em 2019, houve uma apologia a estupro pelos veteranos de medicina,
incluindo um ex-aluno do curso: Matheus Gabriel Baia, o qual protagonizou o “juramento”
em que foi exposto um conteúdo machista, misógino, sexista e pornográfico. Assim,
esse indivíduo foi requerido por uma Ação Civil Pública, na qual o acusava de
dano moral e coletivo, porque em seu discurso – reproduzido pelos outros veteranos
presentes – lesava a existência feminina em um caráter geral. Contudo, apesar
das provas, por meio de um vídeo gravado, do teor das palavras entoadas pelos
estudantes, o caso foi considerado improcedente pela juíza Adriana Gatto
Martins Bonemer, da 3ª Vara Cível.
De certo modo, é
quase curioso (em seu sentido pejorativo) pensar que uma mulher cis, no auge do
século XXI, em uma sociedade ocidental tenha se ocupado do magistrado para
perpetuar injustiças como a desse caso. Pois, são muitas incongruências, ao
começar pelo ofício de Adriana: uma juíza, cargo em que se espera, ao menos, o mínimo
de contribuição para a construção de um coletivo menos desproporcional, no que
se tange a garantia de direitos. Depois, a própria análise social dela: uma
mulher, em realce uma mulher brasileira, ou seja, um corpo também acometido
pela violência de gênero que vigora nesse país, bastante patriarcal e misógino.
Sendo como maior contradição, o decreto final perante as apresentações da ACP,
versus a defesa de Matheus Gabriel, com a magistrada em sua capacidade de
decidir o que seria “justo”, coordenou um desenho machista e conservador sobre
o movimento feminista, e as universidades. Por fim, protegendo não só o
ex-aluno, como os que estavam com ele envolvidos.
Diante disso, pode-se
então recorrer ao sociólogo francês, Pierre Bourdieu e seus conceitos: Campo,
Capital e Habitus para compreender esse caso jurídico.
Primeiro, seguindo a
ordem sequencial dos conceitos, entende-se que todos os indivíduos estão
sujeitos a um espaço social e multidimensional em cujos estão subordinados ao
campo econômico. Assim, trata-se de uma constante disputa de posições de
dominantes e dominados, não necessariamente entre si, mas em subespaços. Dessa
maneira, Adriana ainda que uma mulher cis, está também dentro de um grupo dos
privilegiados, de uma elite econômica do país, em que o subespaço do campo
jurídico – como exemplo calçável nesse contexto— é pensado de uma forma
reacionária aos movimentos emancipatórios, feito o feminismo.
Ademais, aliando ao
Campo (e respeitando a ordem colocada) cabe o conceito do Capital, no qual
Bourdieu propõe uma interpretação para além da perspectiva econômica. Como
também recursos de outra natureza: Capital social, com esses critérios avalia-se
o indivíduo pelas suas relações interpessoais, as quais muitas vezes facilitam
(ou dificultam) o seu acesso ao poder. No caso da juíza, suas relações a
levaram para um alto cargo de poder, de decisão sobre o futuro de alguém, ou de
um coletivo. Além desse tipo de Capital há o cultural, no qual se manifesta pelo
conhecimento e expertise adquiro de maneira formal por alguém, isto é, em
escolas, universidades, por exemplo. Bem se percebe que durante sua formação
enquanto jurista, sendo posteriormente uma magistrada, Adriana Gatto manteve-se
em construir um repertório técnico, pouco buscando compreender a sociedade em
que está inserida, ou enxergando-se socialmente como uma mulher cisgênero.
Inferindo-se que isso reverberou-se fortemente em sua decisão nesse caso.
Não somente esses
dois conceitos auxiliam em compreender o caso dessa ACP, que buscava justiça e
uma coerção para com o Matheus Gabriel. Mas também o de Habitus, isto é, a
forma que o indivíduo concebe o mundo, uma matriz cultural que os predispõe às
certas escolhas. Sendo assim, Adriana Gatto em razão de toda sua formação
enquanto cidadã desenvolveu uma percepção conservadora, a qual pode ser
justificada pelo microcosmos que ela esteve e está inserida.
Por tal premissa, pode-se
interpretar as colocações da juíza na sentença, feito: “A inicial retrata bem a panfletagem feminista, recheada de chavões que
dominam, além da esfera cultural, as universidades brasileiras. É bom ressaltar
que o movimento feminista apenas colaborou para a degradação moral que vivemos,
bem exemplificada pelo "discurso/juramento" que ora se combate.” como
uma ressonância de seu Habitus.
Por mais que o
movimento feminista seja uma luta pela emancipação das mulheres (cisgênero e
transgênero), por uma busca de equidade e sobretudo liberdade – sexual, de
expressão – as posições conservadoras da juíza durante toda a sentença
evidenciam a bolha de privilégios em que ela se encontra, além de seu descompromisso
para com a magistratura e a cidadania.
Porque é inconcebível aceitar que uma mulher exercendo tal cargo, decida como improcedente tamanha manifestação de violência. Dado a disputa histórica das mulheres para ocuparem espaços, como os de estudantes, delineando ao caso, estudantes medicina, serem submetidas após seu ingresso ao curso, passarem por um “juramento”, no qual devem não somente escutar, como repetir que “juram solenemente nunca recursarem a uma tentativa de coito de veterano”. É inaceitável justificar que isso seja uma atitude devassa de jovens, sendo pior aceitar pela defesa do requerido, que esse possui “mãe, irmãs e amigas, ou seja, que não é um agressor (ainda que verbal), por possuir particulares e não pelo seu compromisso com os direitos humanos.
Concluindo-se que
urge uma mudança na formação desses juristas, desses que ocupam o Direito e
futuramente tornam-se magistrados como Adriana Gatto. Porque, para o pleno
funcionamento de uma democracia, o Direito não pode ser apenas um instrumento
da classe dominante, dos interesses dominantes. Nem como formalismo,
indiferente as pressões sociais, como afirmava Bourdieu. Para que não se torne
a regra, sentenças como a dada pela juíza, é preciso alterar os conceitos
postos pelo sociólogo, mudar esse cenário patriarcal, conservador e elitista em
qual estão a maioria dos juristas.
Isabella Uehara - 1° ano noturno
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