Em 2019, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella se revoltou contra um gibi que continha um beijo gay e tentou impor que obras com temática LGBTQIA + destinadas ao público infanto juvenil fossem comercializadas sob a condição de estarem lacradas e com advertência acerca de seu conteúdo “sexual”. A prefeitura chegou a ameaçar caçar o alvará da Bienal e fiscais foram até o evento. Nesse contexto, o ministro Dias Toffoli, derrubou a decisão que autorizava o recolhimento de livros com temática LGBTQIA +. Essa decisão chegou até o Supremo Tribunal Federal (STF) pois violava direitos fundamentais como o direito à liberdade de expressão e a igualdade.
A decisão derrubada foi embasada numa suposta legalidade, justificada por uma violação dos artigos 78 e 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), oferecendo assim uma sensação de “proteção da criança e do adolescente”. Entretanto, essa interpretação foi enviesada por um teor preconceituoso que classificou as relações fora do padrão heteronormativo como nocivas ao desenvolvimento da criança. Essa visão é um reflexo do habitus (conhecimento e capital adquiridos pelo indivíduo durante sua trajetória dentro da sua classe social e no trânsito dos campos) dos juristas e de Marcelo Crivella, que, durante suas vivências foram influenciados pelo campo religioso¹ e pelas ideias dominantes que os circundaram. Essa afinidade entre os espaços sociais frequentados gera uma proximidade de habitus e consequentemente uma similaridade nos discursos. Nesse sentido, é possível afirmar que houve uma tentativa da classe dominante (do espectro econômico e moral) se apropriar de ferramentas jurídicas, para que assim fosse possível manter a sua moral e visão de mundo sob um pretexto legal. Contudo, o espaço dos possíveis estabelecido por uma interpretação progressista e ampliadora da Constituição feita por Dias Toffoli foi responsável por não deixar que isso acontecesse.
O espaço dos possíveis pode e deve ser ampliado e para que as leis não sejam ultrapassadas é necessário que passem pelo processo de historicização. Nessa ótica, a interpretação não taxativa de artigos como o 226 da Constituição Federal, que diz em seu § 3º “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, serve para ampliar a eficácia das leis frente aos conflitos cotidianos no âmbito diversificado da sexualidade e gênero. Vale ressaltar que mesmo sendo fundamental adaptar a norma às circunstâncias vigentes a inventividade do magistrado depende do seu capital simbólico, que representa um acúmulo de recursos, os quais são utilizados como arma na luta concorrencial de interesses. Nesse embate, um ministro do STF possui uma posição de vantagem, o que permite um acesso maior ao poder. Logo, é possível entender que para ele há uma lacuna mais larga, sendo possível pensar na possibilidade de aplicar a hermenêutica não taxativa e expandir o espaço dos possíveis.
Acerca da historicização da lei, vale salientar a decisão do STF de maio de 2011 que reconheceu o direito à união civil para casais formados por pessoas do mesmo sexo. Esse reconhecimento abriu portas para o entendimento legal da família além de um aspecto reducionista. Nessa ótica, pode-se compreender que o Direito não é imune e autônomo frente a pressões externas e que as conquistas dos dominados - nesse caso dos indivíduos da comunidade LGBTQIA+ - foram convertidas para lei por meio de muita luta e que para manter e expandir os direitos é necessário continuar batalhando. Como afirmou o Ministro Celson de Mello em 2011 : “O julgamento de hoje representa um marco histórico na caminhada da comunidade homossexual. Eu diria um ponto de partida para outras conquistas"². Essa fala representa muito bem a mobilização do campo jurídico para uma aspiração social que precisava tomar forma nas leis. Entretanto, não quer dizer que por haver uma lei, que a situação está posta e resolvida, visto que a sociedade se transforma a todo instante.
Concluindo, um beijo entre duas pessoas do mesmo gênero foi considerado um “material impróprio e inadequado ao manuseio por crianças e adolescentes” e a moral dominante foi defendida por alguns juristas, os quais utilizaram de seu capital social, jurídico e simbólico para tentar impor a sua visão de mundo sob os outros, mantendo um “direito da família” específico e resguardando a “vanguarda ética da classe dominante” (BOURDIEU, 1989, p.247), além de tentar “universalizar o seu próprio estilo de vida” (BOURDIEU, 1989, p.247) .Outrossim, vale lembrar que “ o campo jurídico é o lugar de concorrência do direito de dizer o direito” (BOURDIEU, 1989, p.212). Em síntese, no contexto da medida cautelar na suspensão da liminar, duas lutas diferentes se apropriaram da força do direito, usando as mesmas ferramentas para se afirmarem dentro do campo jurídico. Ademais, é necessário e urgente que os juristas amplifiquem o espaço dos possíveis com as ferramentas viáveis - doutrina, hermenêutica, produção científica, jurisprudência, entre outras - para que assim consigam vencer mais batalhas, distanciando-se da hegemonia dos valores da classe dominante.
¹ A título de curiosidade: Crivella é sobrinho de Edir Macedo, fato que exemplifica a influência do campo religioso na sua formação.
² Disponível em : http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/05/supremo-reconhece-uniao-estavel-de-homossexuais.html
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. [Cap. VIII: "A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico", p. 209-254]
SANTOS, Débora. Supremo reconhece união estável de homossexuais. 2011. Disponível em : http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/05/supremo-reconhece-uniao-estavel-de-homossexuais.html. Acesso em 17 out. 2021.
Lorena Prado Silva – 2° Período Noturno
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