O sociólogo francês, Pierre Bourdieu, fala em suas obras literárias sobre um conceito ao qual ele nomeou de habitus. De maneira resumida, habitus é ao arcabouço de ideias que constroem a visão de mundo de um indivíduo, e que é construído ao longo da sua vida por meio da realidade a qual ele se encontra imerso. Isso significa que cada pessoa possui seu próprio habitus e que ele reflete o mundo social que a rodeia.
Você consegue se desprender do seu habitus? Sim, mas, geralmente, nós nem nos damos conta de que temos uma forma de perceber o mundo manchada por ele. Essa falta de noção nos dá a falsa impressão de que agimos livremente, sem perceber que possuímos uma visão de mundo “roteirizada”. Todavia, isso não será um problema se, quando percebermos a sua existência, nos dispusermos a aceitar diferentes formas de enxergar a realidade, cooperando para que alcancemos uma sociedade mais harmônica. Mas… E quando uma pessoa atinge uma posição de poder e não está disposta a abrir mão do seu habitus? Como isso influencia as relações sociais? Para entendermos melhor isso, voltemos uns anos atrás.
Em 2019, na cidade de Franca, São Paulo, foi aberto uma ação civil pública contra Matheus Gabriel Braia, acusado de fazer apologia ao estupro. O caso aconteceu durante um trote da faculdade UNIFRAN, no qual, à convite dos veteranos, Matheus conduziu um “juramento” que os calouros tiveram que repetir. E foi nesse “juramento” que a apologia aconteceu, uma vez que foram ditas frases como: “...Prometo usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver oportunidade…”. No entanto, o ponto principal aqui não é se houve ou não apologia ao estupro (porque houve), mas como se estruturaram as relações sociais a partir de uma análise fundamentada em Bourdieu.
Acredito que dois conceitos de Bourdieu se encaixam perfeitamente na análise do processo: o poder simbólico e o habitus. Todavia, antes de focar na posição da juíza perante o caso - que é o ponto principal da minha análise - voltemo-nos primeiramente a um breve resumo do que os advogados disseram. O que acusava disse que Matheus ultrapassou os limites toleráveis de uma brincadeira e por isso deveria ser penalizado, uma vez que seu discurso teria contido “expressões de conteúdo machista, misógino, sexista e pornográfico, expondo-os (os calouros) à situação humilhante”. O que defendia disse que houve o consentimento dos calouros em participar da brincadeira, que ele não tinha dentro de si ânimo de ódio, que Matheus não tinha escrito o discurso e que só estava repetindo-o, portanto, por essas razões, não poderia ser penalizado. Aqui, me permito comentar que o advogado de defesa mais se parece com um palhaço, um comediante, porque apenas um profissional do humor poderia usar argumentos tão ridículos. Não tinha dentro de si ânimo de ódio? De boas intenções o inferno está cheio...
Com isso exposto, podemos focar no ponto principal do processo, que foi a posição que a juíza Adriana Bonemer adotou. Logo de início ela expôs de que lado estava e, pasmem, não era nem contra nem a favor do requerido, mas uma terceira opção: contra o feminismo. Digo isso porque ela até chega a se posicionar contra Matheus, mas, principalmente contra o feminismo. Enquanto ela se limita a dizer que o “juramento” de Matheus foi vulgar e imoral, ela gasta páginas para discorrer sobre o quão degradante e subversivo é o feminismo. Aqui, nós encontramos o exemplo perfeito do que acontece quando uma pessoa que não está disposta a abrir mão do seu habitus alcança uma posição de poder.
Claramente a Dra. Adriana, influenciada pelo meio que viveu, possui uma percepção de mundo antifeminista (mais especificamente, contra a luta pela liberdade sexual das mulheres) e, por conta disso, se cegou ao fato de que a fala de Matheus realmente fez apologia ao estupro. O seu habitus a influenciou tanto na hora de julgar o caso que ela, simplesmente, gastou mais que a metade da sua fala fugindo do assunto. Se o feminismo é ou não é degradante não estava posto para análise! Além disso, a juíza, que utilizou de vários filósofos para tentar explicar como a revolução sexual é, na realidade, busca por promiscuidade, não entende o conceito de poder simbólico. O homem, simplesmente por nascer homem, possui, numa sociedade patriarcal, um poder que as mulheres não têm.
Ser homem é um símbolo, um símbolo que possui poder. É claro que os homens possuem mais liberdade sexual que as mulheres e sobre isso não vou me estender mais do que uma simples pergunta: Qual a diferença entre chamar alguém de vagabundo e chamar alguém de vagabunda? Está aí a resposta sobre a diferença entre a liberdade sexual masculina e a feminina. No entanto, o habitus da juíza não permitiu que ela enxergasse esse poder simbólico e, por conta disso, deu causa ganha ao Matheus… Sinceramente, o que eu senti ao ler esse processo foi que a juíza fez um papel de advogada de defesa melhor do que o advogado do Matheus. Seria cômico se não fosse triste.
Andrew dos Santos Carneiro,
1º ano de Direito, Noturno
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