Total de visualizações de página (desde out/2009)

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Sobre convicções pessoais, o tipo ideal do brasileiro e suas consequências

 

17 de agosto de 2020. Dia em que uma menina de dez anos, após ser estuprada durante quatro terríveis e traumáticos anos por seu tio, passou por um procedimento para interromper a gravidez gerada pelo abuso. A permissão para o aborto foi concedida pelo juiz Antônio Moreira Fernandes, baseada em fatores, tanto legais, quanto sociais. Em relação à questão legal, o Decreto-Lei 2848/1940, do Código Penal, permite o aborto em três condições, sendo que duas delas eram apresentadas pela menina: gravidez resultante de estupro, somado ao fato de causar perigo à vida da gestante. Ambos fatores são inquestionáveis, devido ao relato concedido pela menina sobre o abuso que sofreu e, também, à estrutura corpórea de uma criança de 10 anos não ser suficiente para suportar uma gravidez. Partindo para o âmbito social, é indubitável o fato de uma menina não ter condições psicológicas para criar uma criança. Ela ainda é uma. Tendo esmagadora parcela da infância roubada por um abusador, a quantidade restante deve ser, apesar da consequência gerada pelo trauma, conservada e usufruída de modo inocente, puro. De modo infantil.

Apesar dessas válidas considerações, dia 16 de agosto de 2020, manifestantes religiosos fizeram protestos para que o aborto não fosse realizado. Esse grupo se baseou em crenças religiosas com o argumento de que a vida é uma dádiva divina e ninguém tinha o direito de cessá-la. Assim, agiram de acordo com seus valores, independentemente da reação da sociedade e, no caso em questão, da constituição. Partido para m âmbito sociológico, o protesto regido por valores cristãos seria definido, por Max Weber, como ação racional com relação a um valor.

O sociólogo alemão construiu sua teoria a partir de uma sociologia compreensiva, isto é, busca explicar o que motivou o indivíduo a produzir tal ação, qual seu objetivo. Em sua obra, "Metodologia das ciências sociais", explicita tal compreensão ao afirmar querer descobrir “ (...) o conhecimento do significado daquilo que é o ‘objeto’ da aspiração”. Logo, para ele, o sentido para ações sociais serem realizadas depende da cultura, que engloba valores, moral, determinações econômicas, política, poder e dominação.  Nesse ponto, sua perspectiva distancia-se da marxista, pois, enquanto para Marx somente a força econômica regia a história, Weber inclui outros fatores determinantes. Além de atribuir sentido para as ações sociais, o sociólogo as classifica em quatro tipos: ação racional com relação a um objetivo; ação racional com relação a um valor; ação afetiva ou emocional e, finalmente, ação tradicional.

De modo que a ação racional com relação a um valor se defina como aquela em que seu ator aceita os riscos em relação aos seus atos, sendo fielmente regido por seus valores e ideias, é possível de ser feito um paralelo entre ela e o protesto religioso. Apesar de os manifestantes saberem que seriam afastados por seguranças, não deixaram de realizar seu protesto contra o aborto, devido aos seus valores cristãos.

Diante desse panorama, é, possível, ainda fazendo referência à sociologia weberiana, traçar o tipo ideal da sociedade brasileira. Segundo o sociólogo, o “tipo ideal”-que tende à ser descartado-representa uma ferramenta metodológica para análise, não correspondendo, necessariamente a algo que “deve ser”, mas o objetivamente possível, sendo uma forma de organizar a complexidade caótica do real, a partir da comparação entre os fatos e o tipo ideal. Após o episódio citado, envolvendo estupros e manifestações religiosas contrárias ao aborto, e somado a tantos outros análogos e nefastos na contemporaneidade, Weber consideraria o tipo ideal da sociedade brasileira como, entre outras características que não serão debatidas nesse texto, cristã e machista.

                Todo esse cenário é extremamente desanimador. Quando o homem decide realizar sua ação racional com relação a um valor, não deve prejudicar o seu entorno. Sua convicção é pessoal e, justamente por isso, não deve reger a vida outros indivíduos, a não ser a dele. No caso mortificante da menina de dez anos, a convicção religiosa dos manifestantes e, também, machista -por querer decidir sobre o corpo da mulher- iria prejudicar a vida de duas crianças, caso fosse aceita. Agora, suscita-se a última indagação: Se a vida, segundo os protestantes, é uma dádiva divina, por que se sentem no direito de prejudicar duas?

Ana Marcela Nahas Cardili- 1° ano Direito Matutino

Nenhum comentário:

Postar um comentário