Em 2540, a vasta maioria da população vive unificada num
Estado totalitário em que a paz reina eternamente, a sociedade é absolutamente
estável, os recursos são infinitamente abundantes e todos – sim, todos, sem
exceção – são felizes. Parece bom? Essa é a realidade retratada pelo brilhante
americano Aldous Huxley em sua obra prima Admirável Mundo Novo.O livro foi lançado no longínquo ano de 1931, e fica mais
assustador conforme os anos passam e se percebe que nossa sociedade se
assemelha cada vez mais com a distopia retratada por ele. A discussão nesse
texto, no entanto, não é exatamente essa; será feita uma breve análise da
função e da aplicabilidade dos fatos sociais descritos por Durkheim no
indivíduo e na sociedade huxleana.
Em Admirável Mundo Novo todos os cidadãos são gerados em
provetas de laboratório, de maneira que são desde antes de nascer moldados para
se adequarem à casta que foram designados. O tipo de coerção exercida pelos
fatos sociais na obra vai muito além de hábitos e costumes intrínsecos à
sociedade, eles tornam-se coerções químicas, psíquicas e até mesmo físicas. Como no mundo de hoje,
por exemplo, altura é um atributo de beleza, portanto na obra os indivíduos das castas mais
inferiores recebem dentro do útero artificial inibidores que previnem um
crescimento correspondente a outra casta. Uma vez fora do útero, os bebês passam por um seríssimo
processo de doutrinação – para não dizer lavagem cerebral. O intuito dessa
doutrinação é fazer com que os novos cidadãos não só aceitem sua condição –
seja lá qual for – mas amem-na de maneira genuína. É claro que numa sociedade
alguns indivíduos terão que exercer tarefas de certa forma indignas, e o
processo de doutrinação é responsável por fazer com que as castas designadas a
essas tarefas não sintam-se desfavorecidas, muito pelo contrário aliás. São
colocados durante horas em um ambiente em que são obrigados a ouvir dezenas de
milhares de vezes frases como “A casta Delta, minha casta, é a melhor casta que
existe.”
Um bebê cuja profissão fosse ser de catador de lixo ouviria “Ser
catador de lixo é a tarefa mais nobre que um ser humano pode exercer, tenho
muita sorte de ter essa oportunidade.” Huxley escancarou o fato social na cara
do leitor. No caso do catador de lixo, ainda que seja uma tarefa importante,
por limpar a cidade, melhorar o ar que respiramos e a aparência da comunidade,
hoje na nossa sociedade essa é considerada uma tarefa pouco honrosa, isso não é
no entanto nos ensinado dogmaticamente, é algo que se aprende hodierna e
subconscientemente. O condicionamento social é contínuo, ocorre durante toda a
vida do indivíduo. Existem jornais específicos para cada casta, em que cada
indivíduo tem a oportunidade de ouvir o que quer/precisa ouvir. O mesmo ocorre
na nossa sociedade hoje, existem informativos de cunho popular e de cunho mais
culto, ainda que a divisão de castas não seja aberta como na obra.
Um dos aspectos mais interessantes do livro é a maneira como
os indivíduos se relacionam com o prazer. O sexo é incentivado abertamente em
todos os níveis da sociedade, e não tem nenhuma conotação reprodutiva; todos os
cidadãos recebem cotas semanais de uma droga do Estado chamado SOMA, que lhes
proporciona êxtase indescritível. Na nossa sociedade hoje, é inimaginável que,
como na obra, se incentivasse crianças a investigar mais a fundo sua
curiosidade sexual. No entanto, na obra, o inimaginável seria o oposto. Isso
ocorre porque em ambas as sociedades – a huxleana e a nossa – os indivíduos
foram condicionados pelos fatos sociais a, no primeiro caso, ter atividade
sexual desde a infância, e no segundo caso, a se evitar tocar no assunto.
O aspecto coercitivo do fato social, que faz com que ele
sobressaia-se ao indivíduo é visível nesse caso. Qualquer criança que, por
exemplo, demonstre na escola interesse – ainda que certamente por pura
curiosidade inocente – no órgão sexual de outra criança é reprimida, e os pais
da criança certamente são avisados do ocorrido, e é esperado deles que
tomem as devidas medidas para que isso não volte a ocorrer. A criança teve interesse, e o fato social interviu como se
dizendo-lhe “Você não pode fazer isso.” Ao mesmo tempo, na sociedade huxleana
uma criança que não tivesse a menor curiosidade no assunto seria literalmente
forçada a se interessar. Algo semelhante ocorre no filme The Wall do Pink
Floyd, em uma cena em que o professor zomba do aluno que estava escrevendo poemas na aula e
logo em seguida começa a dogmaticamente ditar regras matemáticas para seus
alunos reproduzirem. Nos três casos, os fatos sociais tem a função de manter a
ordem, de não chocar, de manter as coisas como estão. Na nossa sociedade eles
são velados e camuflados, mas estão intrinsecamente presente em cada ditado, em
cada hábito, e cada costume, em cada olhar repreensivo dos pais e dos
professores, em cada congratulação. Na sociedade de Huxley eles estão
escancarados, por isso a análise é mais fácil.
Comunidade, Identidade, Estabilidade. Esse é o lema do
Estado da sociedade huxleana. Muitas das insatisfações são oriundas de
conflitos entre desejos pessoais e os fatos sociais. A sociedade dita uma
regra, mas sua mente dita outra, e esse conflito gera infelicidade. Os fatos sociais são um moedor de carne invisível, moldando seus indivíduos para que pensemos todos iguais e ajamos
todos iguais. Qualquer pedaço de massa que sobressaia ao molde é impiedosamente
retirado como um câncer social. Como foi dito no primeiro parágrafo,
absolutamente todos os indivíduos da sociedade huxleana são plenamente felizes,
visto que os fatos sociais são diferentes para cada casta. Talvez para nós seja inimaginável incentivar crianças a terem interesse sexual, mas acharíamos absolutamente normal caso tivéssemos nascidos nessa sociedade e tivéssemos aprendido dessa maneira desde cedo. Interpretando o lema do Estado huxleano, pode se dizer que nossa Comunidade é
uma só, mas existem inúmeras Identidades, que quando diferem da padrão devem ser
oprimidas em prol da Estabilidade. Por isso é de extrema importância que a casa
e a escola sejam ambientes de reflexão, e não de reprodução; que pais e professores
ensinem não o que pensar, mas como pensar, de forma que a criança não seja
apenas mais um tijolo no muro social.
Por Lucas Omer Severen Surjus
1º Ano de Direito Diurno
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