As Baratas Durkheiminianas
Gregor Samsa
era um homem normal, caixeiro-viajante, trabalhador, sustentava sua família com
suas atividades laborais. Suas responsabilidades familiares não eram nada mais
do que sua obrigação quanto cidadão de boa moral, mesmo que isso lhe custasse à
renúncia de seus desejos e de suas expectativas pessoais. Tudo mudou em uma
manhã qualquer, quando, após um sonho agitado, viu que se transformara em um
inseto monstruoso. Suas pernas foram transformadas em inúmeras articuladas
patas, suas costas agora estavam duras como couraça e o seu corpo se resumia a
um todo asqueroso de quitina marrom. A família desesperada não entendia a
mutação, procuraram ajuda, chamaram médicos, precisavam trazer de volta o seu
querido Samsa. Não houve jeito, a mutação estava completa e imutável, o que
restava era abandonar aquela aberração em
seu quarto, esquecido e escondido como um escândalo familiar. Com o tempo Gregor
foi esquecido, permanecia vivo apenas pela ajuda de sua irmã que lhe levava
algum alimento esporádico. Era uma aberração, nada além disso.
A obra
kafkaniana metaforiza com excelência o estado de anomia social descrito pelo
sociólogo Émile Durkheim. A negação da individualidade em detrimento ao bem
estar coletivo configura um fato social, pois o indivíduo sente-se coagido pelo
pensamento massivo que lhe impõem regras sociais a serem cumpridas. Dessa forma,
muitas vezes a normalidade não é algo natural, mesmo que para o indivíduo possa
parecer como tal. A normalidade seria, por sua vez, um estado de consciência coletiva,
que dita às normas sócias a serem seguida; e qualquer indivíduo que ouse
infringir essas normas é castigado pela crítica coletiva ou até mesmo pelos
ordenamentos jurídicos, já que, segundo durkheim, a maioria dos fatos sociais
tendem a serem normatizados.
A sociedade
assume, assim, uma forma organicista. Os indivíduos são partes de um corpo
social, cada um exercendo uma função especializada, que, na somatória das
partes, surgiria como um todo funcional e equilibrado. Essa visão organicista,
apesar de fornecer uma análise funcional e objetiva ao ordenamento social,
enquadra o diferente como um tumor. Outrossim, cada indivíduo estaria reduzido
a uma engrenagem de uma máquina,isto é, uma célula de um corpo social.
Gregor Samsa
ao deixar de cumprir sua função de trabalhador e mantenedor da família,
torna-se um tumor social, pois desrespeita os ditames da consciência coletiva.
Assim, assume a forma de barata, um ser repulsivo, a excreção desse corpo
social consolidado. Contudo, a quitina que lhe enrijece o corpo serve como um
instrumento de libertação da alma. Ao senti-se abandonado pela família e pelos
amigos, Samsa analisa, depois de muito tempo de trabalho robótico, o sentido e
a veracidade de sua vida anterior.
Dessa forma
surge o questionamento: Valeria a pena a negação de sua individualidade para a
manutenção de uma ordem estabelecida? O personagem de Kafka morre sozinho,
escondido e esquecido, mas mantém a sua forma de inseto. Talvez seja realmente
essa a resposta: Antes ser essa mutação asquerosa que desafia a normalidade, do
que apenas seguir a moralidade imposta por uma sociedade caduca.
José Roberto Bernardo Bettarello - Direito Noturno
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