São
04:00 horas da manhã de um domingo, infelizmente acabo de acordar de um sonho
por conta dos gritos dos vizinhos, nesse sonho eu era finalmente tudo aquilo
que almejo, um proprietário de terras no interior, lugar onde a agitação da
vida na cidade não existia. Os gritos não param, mas dessa vez parecem mais próximos,
quem será que esta gritando? Impossível saber, moro em um prédio onde há
centenas de moradores, isso me incomoda, sobretudo o fato dele ser muito caro,
apertado e frio no inverno. Finalmente abro os olhos e me deparo com algo
assustador, meu vizinho, assim como Kafka se materializou em um inseto, estava
materializado em meu despertador. Depois de um tempo me acalmei e concebi uma compreensão:
os homens no capitalismo são aquilo que produzem, nada mais logico que meu
vizinho relojoeiro seja considerado como coisa. Entretanto, algo me instigava,
que tipo de tempo ele representava? O tempo antes ou depois da globalização?
Pois se for o depois, estou atrasado para o emprego, em domingo também é dia de
trabalho. Me arrumo para o trabalho e faço questão de não esquecer meu livro de
coaching, leio sempre na hora do almoço para ganhar uma motivação extra devido
aos ensinamentos de empreendedorismo pessoal.
As
4:30 horas entro no meu carro para ir ao trabalho, mas acontece um imprevisto,
o motor por algum motivo não quer pegar. Finalmente encontrei a resposta, meu
carro é um Toyota e percebo que meu motor é um outro vizinho meu, um imigrante
da Ásia, lá eles só produzem essa parte do carro, então ele não entende o todo e
não consegue se relacionar com o resto do objeto, como por exemplo as rodas,
que são meu vizinho latino. Como estava atrasado para o trabalho evito de
tentar arrumar o carro e decido pegar um metrô, ao longo do trajeto me deparo
com propagandas que fazem meus olhos brilharem, eu precisava possuir aquelas
coisas para elas também me possuírem.
Perto
das 5:00 horas chego ao trabalho, sou advogado de um escritório que representa
empresas e minha função é defendê-las dos funcionários que foram demitidos sem
justa causa. Considero o que faço digno, pois é extremamente desprezível pessoas
que não se reinventam e ficam no mesmo emprego 15 anos esperando serem demitidas,
o mundo produtivo é competitivo e elas também precisam ser. Finalmente chega a
hora do almoço as 12:00 horas, (o melhor horário do meu dia) tenho meia hora de
almoço e esse é o único momento que tenho para relaxar nas 24 horas. Como minha
comida em 10 minutos e começo a ler meu livro sobre empreendedorismo, é de um “intelectual”
famoso na internet, nos é ensinado como o tempo vale ouro e como sempre devemos
aproveita-lo a cada momento, trabalhando e fazendo coisas produtivas.
Infelizmente
o relógio marca 12:31 e preciso voltar ao serviço. Uma estagiaria nova chega
até mim, diz que o chefe quer falar comigo e não é uma notícia boa. As palavras
do dono foram as seguintes: “Infelizmente o escritório está passando por
momentos com risco de crise e alguns funcionários terão que também assumir esse
risco, lamento, mas terei que mandar você embora”. Fiquei triste em primeiro
momento, mas entendi a situação, não havia nada de injusto em me demitir do
nada, eu deveria ter sido mais produtivo para evitar a crise, agora o que resta
é arcar com as consequências. Pois não sou igual aqueles contra quem advogo,
embora também seja um desempregado...
Voltando para a casa de ônibus para economizar dinheiro eu vejo pela janela uma livraria, havia um livro escrito “A necessidade da consciência de classe”. Nunca gostei dessas coisas comunistas. Chegando em casa abro meu livro do coach e me deparo com algo que viria a mudar a minha vida, um capítulo chamado “Os trabalhos informais como caminho para ascensão social”, devorei cada palavra ali contida e me prontifiquei: amanhã começo a trabalhar de Uber e meu futuro estará garantido, só espero que meu carro funcione... (de fundo, em outro apartamento, se ouve a música “Mes Aïeux – Dégénérations”)
Tradução do francês do
Quebec:
Seu tataravô teve que
desobstruir a terra,
Seu bisavô teve que
trabalhar a terra,
Depois o seu avô rentabilizou
a terra,
E depois seu pai a vendeu
para se tornar funcionário público
E você, meu rapaz, não
sabe mais o que fazer.
Com seu apartamento muito
caro e frio no inverno,
Às vezes te dá vontade de
possuir algo para você,
Sonhando de noite em ter
Seu próprio pedacinho de terra
[..]
O seu tataravô viveu a
Grande Depressão
O seu bisavô guardava os
centavos
E depois o seu avô,
milagrosamente, se tornou milionário
Seu pai herdou algo disso
e aplicou tudo em sua aposentadoria
E você, jovem, deve seu
traseiro ao governo
Impossível de conseguir
um empréstimo num banco
Para acalmar os seus
desejos de furtar
Você lê livros que
falam...
... de "simplicidade
voluntária".
Referências:
Vídeo que serviu de inspiração a crônica
EL EMPLEO / THE EMPLOYMENT [S. l.: s. n.], 2011. 1 vídeo
(6 min 24 seg). Publicado pelo canal opusBou. Disponível em: https://youtu.be/cxUuU1jwMgM. Acesso
em: 23 ago 2020.
Musica citada
Mes Aïeux – Dégénérations [S. l.: s. n.], 2015. 1
video (3 min 12 seg). Publicado pelo canal Disques Victoire. Disponível em: https://youtu.be/JvcEP0EjqIc. Acesso
em: 23 ago 2020.
Otávio Eloy de Oliveira - 1 ano de Direito - Noturno
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