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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Crônica de um trabalhador inserido no contexto de "acumulação flexível"

 

São 04:00 horas da manhã de um domingo, infelizmente acabo de acordar de um sonho por conta dos gritos dos vizinhos, nesse sonho eu era finalmente tudo aquilo que almejo, um proprietário de terras no interior, lugar onde a agitação da vida na cidade não existia. Os gritos não param, mas dessa vez parecem mais próximos, quem será que esta gritando? Impossível saber, moro em um prédio onde há centenas de moradores, isso me incomoda, sobretudo o fato dele ser muito caro, apertado e frio no inverno. Finalmente abro os olhos e me deparo com algo assustador, meu vizinho, assim como Kafka se materializou em um inseto, estava materializado em meu despertador. Depois de um tempo me acalmei e concebi uma compreensão: os homens no capitalismo são aquilo que produzem, nada mais logico que meu vizinho relojoeiro seja considerado como coisa. Entretanto, algo me instigava, que tipo de tempo ele representava? O tempo antes ou depois da globalização? Pois se for o depois, estou atrasado para o emprego, em domingo também é dia de trabalho. Me arrumo para o trabalho e faço questão de não esquecer meu livro de coaching, leio sempre na hora do almoço para ganhar uma motivação extra devido aos ensinamentos de empreendedorismo pessoal.

As 4:30 horas entro no meu carro para ir ao trabalho, mas acontece um imprevisto, o motor por algum motivo não quer pegar. Finalmente encontrei a resposta, meu carro é um Toyota e percebo que meu motor é um outro vizinho meu, um imigrante da Ásia, lá eles só produzem essa parte do carro, então ele não entende o todo e não consegue se relacionar com o resto do objeto, como por exemplo as rodas, que são meu vizinho latino. Como estava atrasado para o trabalho evito de tentar arrumar o carro e decido pegar um metrô, ao longo do trajeto me deparo com propagandas que fazem meus olhos brilharem, eu precisava possuir aquelas coisas para elas também me possuírem.

Perto das 5:00 horas chego ao trabalho, sou advogado de um escritório que representa empresas e minha função é defendê-las dos funcionários que foram demitidos sem justa causa. Considero o que faço digno, pois é extremamente desprezível pessoas que não se reinventam e ficam no mesmo emprego 15 anos esperando serem demitidas, o mundo produtivo é competitivo e elas também precisam ser. Finalmente chega a hora do almoço as 12:00 horas, (o melhor horário do meu dia) tenho meia hora de almoço e esse é o único momento que tenho para relaxar nas 24 horas. Como minha comida em 10 minutos e começo a ler meu livro sobre empreendedorismo, é de um “intelectual” famoso na internet, nos é ensinado como o tempo vale ouro e como sempre devemos aproveita-lo a cada momento, trabalhando e fazendo coisas produtivas.

Infelizmente o relógio marca 12:31 e preciso voltar ao serviço. Uma estagiaria nova chega até mim, diz que o chefe quer falar comigo e não é uma notícia boa. As palavras do dono foram as seguintes: “Infelizmente o escritório está passando por momentos com risco de crise e alguns funcionários terão que também assumir esse risco, lamento, mas terei que mandar você embora”. Fiquei triste em primeiro momento, mas entendi a situação, não havia nada de injusto em me demitir do nada, eu deveria ter sido mais produtivo para evitar a crise, agora o que resta é arcar com as consequências. Pois não sou igual aqueles contra quem advogo, embora também seja um desempregado...

Voltando para a casa de ônibus para economizar dinheiro eu vejo pela janela uma livraria, havia um livro escrito “A necessidade da consciência de classe”. Nunca gostei dessas coisas comunistas. Chegando em casa abro meu livro do coach e me deparo com algo que viria a mudar a minha vida, um capítulo chamado “Os trabalhos informais como caminho para ascensão social”, devorei cada palavra ali contida e me prontifiquei: amanhã começo a trabalhar de Uber e meu futuro estará garantido, só espero que meu carro funcione... (de fundo, em outro apartamento, se ouve a música “Mes Aïeux – Dégénérations”)

 

Tradução do francês do Quebec:

 

Seu tataravô teve que desobstruir a terra,

Seu bisavô teve que trabalhar a terra,

Depois o seu avô rentabilizou a terra,

E depois seu pai a vendeu para se tornar funcionário público

E você, meu rapaz, não sabe mais o que fazer.

Com seu apartamento muito caro e frio no inverno,

Às vezes te dá vontade de possuir algo para você,

Sonhando de noite em ter

Seu próprio pedacinho de terra

[..]


O seu tataravô viveu a Grande Depressão

O seu bisavô guardava os centavos

E depois o seu avô, milagrosamente, se tornou milionário

Seu pai herdou algo disso e aplicou tudo em sua aposentadoria

E você, jovem, deve seu traseiro ao governo

Impossível de conseguir um empréstimo num banco

Para acalmar os seus desejos de furtar

Você lê livros que falam...

... de "simplicidade voluntária".


Referências:

Vídeo que serviu de inspiração a crônica 

EL EMPLEO / THE EMPLOYMENT [S. l.: s. n.], 2011. 1 vídeo (6 min 24 seg). Publicado pelo canal opusBou. Disponível em: https://youtu.be/cxUuU1jwMgM. Acesso em: 23 ago 2020.


Musica citada

Mes Aïeux – Dégénérations [S. l.: s. n.], 2015. 1 video (3 min 12 seg). Publicado pelo canal Disques Victoire. Disponível em: https://youtu.be/JvcEP0EjqIc. Acesso em: 23 ago 2020.


Otávio Eloy de Oliveira - 1 ano de Direito - Noturno


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