Considerações sobre a decisão
judicial de Jales acerca da transexualidade.
Por meio das revoluções liberais, a racionalidade burguesa ilustrada elevou
a ideia de igualdade dos homens à condição de princípio fundamental da
humanidade, concedendo-lhe status de direito natural. Direito natural formal, pela
perspectiva de Weber, oriundo da lógica da nova classe que assumia o poder. No
Brasil, tal concepção foi logo incorporada formalmente ao ordenamento jurídico
nacional, como se observa da Carta Política de 1824, todavia, na prática, o que
se vê é um longo e lento processo histórico rumo à igualdade material. Seguindo
essa linha, no texto constitucional de 1988, o legislador constituinte procurou
estender expressamente tal direito à mulher (art. 5º, I, da CF/88),
considerando uma realidade social construída sobre a concepção binária de homem
e mulher, como se depreende, por exemplo, da definição de entidade familiar do
art. 226, § 3º, da CF/88.
Deste modo, não seria incorreto imaginar que, para o legislador de
1988, estar-se-ia criando um sistema jurídico abstrato que abarcaria toda uma
constelação de fatos relacionados à igualdade das pessoas, ao prever que homens
e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Todavia, a evolução das
sociedades tem dado ensejo à manifestação de grupos que sempre viveram à margem
do direito formal ou, na melhor das hipóteses, procuraram se adaptar, bem ou
mal, às regras normativas vigentes. Um desses grupos é aquele dos transexuais, os
quais são alvo constante de assédio moral e de discriminação em diversas
esferas, das relações interpessoais ao trabalho. Para serem respeitados e se sentirem
aceitos como iguais na sociedade, afastando, assim, os inevitáveis traumas
psicológicos, muitos têm optado pela via judicial para garantir a materialidade
de seus direitos.
No caso concreto, analisado pela Vara do Juizado Especial da Fazenda
Pública da Comarca de Jales, o requerente, transexual comprovado, pleiteia a
tutela antecipada para cirurgia de mudança de sexo, a cargo do SUS, e para alteração
do nome e do sexo, de masculino para feminino, no seu registro civil. Este
juízo singular deferiu o pedido, acolhendo o argumento de sofrimento
psicológico decorrente do tratamento social recebido pelo paciente, ora
requerente, e amparando sua decisão em jurisprudência dos tribunais
judiciários, em disposições do Código Civil (como o art. 13 do CC que permite a
disponibilização do próprio corpo naqueles casos previstos) e em direitos
fundamentais, como liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana. Reforça
que o transexualismo não é uma patologia e aduz que tal medida evitaria
possíveis ações suicidas e que garantiria o pluralismo constitucional,
respeitando-se, assim, todas as formas de viver.
Olhando por uma perspectiva da racionalidade weberiana do direito, tal
decisão procurou aplicar disposições jurídicas vigentes ao caso concreto, objetivando
encontrar uma solução jurídica que prestigiasse o direito material dessa pessoa
de receber um tratamento igual e digno de toda a sociedade. Em que pese o nobre
intuito, é preciso se debater se esta é a melhor solução para casos
semelhantes. Afinal, considerando que a origem da questão provém da incompreensão
e da intolerância, ou seja, tem cunho fundamentalmente social, a tentativa de adequar
fisicamente uma pessoa a um dos dois padrões socialmente estabelecidos (homem
ou mulher) é a melhor forma de lhe garantir um tratamento digno, igual e de
promover a pluralidade? É preciso considerar, além dos riscos da intervenção cirúrgica
e dos possíveis efeitos colaterais de um tratamento hormonal, a eventual
continuidade da discriminação social. Nesse sentido, talvez o melhor caminho,
no longo prazo, seria atuar na educação e promoção de direitos desses grupos,
além da criação de regras especiais para sua proteção no ordenamento jurídico.
Nesse contexto, é oportuno observar a posição do Irã sobre o assunto.
Lá os transexuais são vistos como vítimas de uma doença curável mediante
cirurgia e o governo subsidia tal procedimento (o Irã é o segundo país do mundo
em cirurgias desse tipo). Já os homossexuais são inexistentes oficialmente,
como afirmou o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, em 2007, ao declarar que
“não há homossexuais no Ir㔹. Segundo relatos, as pessoas são bastante incentivadas
e procuram mudar de sexo, como uma forma de serem aceitas socialmente².
Todavia, como um contraponto, vale refletir sobre as palavras confessadas por uma das
transexuais operadas, que, segundo ela, representam um sentimento amplamente compartilhado em
silêncio: “Não teria mutilado meu corpo se a sociedade tivesse me aceitado do
jeito que eu nasci”¹.
Referências:
1.
Operação antigay. Folha de São Paulo. Disponível
em:
Acesso em 18/10/2015
2. Gays sofrem pressão para mudar de sexo e escapar
da pena de morte no Irã. BBC Brasil. Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141105_ira_gays_hb>.
Acesso em 18/10/2015
Fernando –
1º Ano Direito Noturno (texto sobre o Direito Formal e Direito Material - Weber)
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