Émile Durkheim descreve em sua obra o contraste entre as sociedades pré-modernas e modernas. Ele descreve um fenômeno que ocorre nas sociedades pré-modernas, que é o fato de o “crime” e o que é considerado crime não estar relacionado diretamente ao prejuízo social/econômico causado pelo delito, mas sim ao impacto na consciência coletiva da sociedade. Dessa forma, tal ato é mais crime por chocar a população e ir contra seus ideais do que por necessariamente ter causado o mal. Essa característica atribui forte caráter punitivo às sociedades pré-modernas. Mas será que isso foi completamente superado?
Em teoria, a solidariedade orgânica, típica das sociedades
modernas e mais complexas, faria com que a definição e a reação do crime
ficasse muito mais estrita aos códigos criminais e à esfera jurídica, devido ao
altíssimo de grau de especialização. Assim, em tese, todo o processo desde o
cometimento do delito até o julgamento e punição ficaria a cargo de pessoas e órgãos
específicos especializados para essa função.
Entretanto, na prática, não é exatamente isso que acontece. A
consideração do crime como algo condenável mais pelo desacordo com os valores
da consciência coletiva do que pelo dano direto e objetivo do ato ainda permanece
incutido na mentalidade de parte considerável da população. Um exemplo disso no
Brasil é o caso que aconteceu durante a 19° parada LGBTQI+, em 2015, quando a
atriz transexual Viviany Beleboni desfilou "crucificada”, fazendo uma
analogia com o sofrimento de Jesus e o passado pela população LGBTQI+. Essa performance
gerou revolta em setores conservadores da sociedade, que exigiam que Viviany
fosse punida por “atacar a Igreja e os bons costumes”, e a atriz chegou até a
ser processada pela Associação das Igrejas Evangélicas. Essas pessoas demandavam
uma condenação para a atriz pois sentiram que o protesto ofendeu os ideais
instalados na consciência de cada uma delas, e que, por isso, deveria ser
considerado ato criminoso.
A discrepância entre a natureza subjetiva do crime e suas consequências
nas sociedades pré-modernas e na mentalidade dos setores conservadores das
sociedades mais complexas e a natureza objetiva e restrita do ato ilícito e de
seu processo punitivo empregada de fato nestas últimas é tanta que,
recentemente, mesmo sob protestos e reclamações, o apresentador Sikêra Jr, da
RedeTV, foi condenado a pagar uma indenização de R$30.000 a Viviany Beleboni,
pelas ofensas proferidas à ela no passado, provando que, atualmente, o choque
com os valores de determinado grupo não necessariamente configura crime, mas a
ofensa de caráter preconceituoso direcionada à populações tradicionalmente
marginalizadas, sim.
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