O objeto central de análise do método durkheimiano é o fato social, a partir do qual o filosofo entende que todo individuo é, de certa forma, influenciado pela força coercitiva da consciência geral. Nesse panorama, a sensação de autonomia é colocada em xeque, pois o fato gera hábitos e, consequentemente, a impressão de que as formas de agir e pensar partem apenas da vontade individual. Mas, ainda nesses casos, a consciência coletiva molda as concepções particulares. Partindo desse pressuposto, Durkheim delimita a sociedade em dois modelos, sendo o mecânico mais primitivo e o orgânico mais complexo.
Na sociedade mecânica, é percebido o direito em sua forma mais instintiva. Como a conexão entre os indivíduos é fundada no compartilhamento de princípios comuns à maioria, o exercício jurídico nota-se, essencialmente, na conservação dessa moralidade. Sendo assim, a técnica jurídica não é necessária, já que cada cidadão é dotado dos princípios imprescindíveis à aplicação da justiça. O objetivo do direito aqui transcende a manutenção das relações sociais e busca satisfazer a pulsão por vingança, traço de passionalidade do ser humano. A pena surge, então, com a função de punir aquele cujas ações infringem a moralidade coletiva e impor determinada conduta a partir do medo. Assim, mesmo os que não comungam dos princípios majoritários, os praticariam por temer as consequências do descumprimento.
Conforme as necessidades dos grupos sociais se tornam mais complexas, as funções dentro da sociedade são divididas especificamente entre os indivíduos, aumentando a dependência uns dos outros. Nesse sentido, o direito se torna cada vez mais técnico e instrumentalizado para o funcionamento harmônico do organismo social, sendo sua aplicação efetuada por profissionais com embasamento doutrinário, não mais de forma difusa. O caráter passional punitivo é substituído e o objetivo se torna a restituição do crime. É o que Emile Durkheim caracteriza como solidariedade orgânica.
Nesse contexto, do mesmo modo que cada célula desempenha uma função em um organismo, cada ser humano contribui para o funcionamento do corpo social, sendo a reinserção do criminoso na sociedade mais vantajosa que seu extermínio.
O pensador afirma que assim se organizam as sociedades capitalistas modernas, desde as evoluções industriais. Contudo, no Brasil contemporâneo, são observáveis resquícios da mentalidade mecânica, sobretudo no que concerne ao âmbito jurídico. Trata-se da disseminação de chavões como “Bandido bom é bandido morto”, com o qual 50% dos moradores das cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes concordam – de acordo com pesquisas do Instituto Data Folha. O apoio dessa parcela da população ao uso excessivo da força legitima gravíssimos episódios de violência policial, sendo necessária a compreensão da causalidade desse fenômeno.
De início, causa incômodo ao cidadão comum que o direito seja tão especializado, sendo suas técnicas desconhecidas pela consciência coletiva. A riqueza teórica da matéria jurídica, junto à despolitização do homem médio, geram angústia e desconfiança nas instituições, sobretudo no Poder Judiciário. Alheio a normatividade estabelecida, o indivíduo entende que o aumento da criminalidade se vincula à branda atuação desses órgãos, razão pela qual reinaria a impunidade.
Adiciona-se, ainda, o fato de que o caráter restitutivo do direito contemporâneo não satisfaz a necessidade do moralismo conservador de que a pena ecoe para a sociedade. Não é mais instaurado o medo da punição. O ferimento à moralidade coletiva não é vingado. Ainda que tal modalidade de jurisdição sanasse todos os problemas sociais, não supriria a necessidade passional arraigada na consciência conservadora. Não contemplaria a noção de que quem causa sofrimento, deve sofrer. Quem mata, merece morrer.
Por fim, supõe-se que a conservação da mentalidade que remete às superadas sociedades mecânicas se dá devido ao esforço que a reflexão crítica despende. Dessa forma, o homem encontra no discurso despótico e justiceiro uma forma de organizar seus pensamentos, reduzindo-os a uma dicotomia maniqueísta: o cidadão de bem versus o bandido. Esse reducionismo foi retratado na pesquisa de Paulo Victor Leite Lopes, na qual 49% dos entrevistados indagados acerca dos fatores que levam à criminalidade ‘apontam causas de natureza individual’ como a má índole.
A tão entoada frase “Bandido bom é bandido morto”, por fim, em nada contribui para a solidariedade orgânica. Ao contrário, revela um pragmatismo imediatista, no qual as circunstâncias que causam a criminalidade são desconsideradas e o funcionamento social colocado em segundo plano. A passionalidade fala mais alto que a razão. A moralidade se sobrepõe à solidariedade e, por conseguinte, a problemática continua permeando o organismo social. O que demonstra que a modalidade sugerida pelo filosofo francês séculos atrás não alcançou, até hoje, sua efetividade plena.
Referencias:
LEMGRUBER, Julita; CANO, Ignacio; MUSUMECI, Leonarda. . Olho por olho? O que pensam os cariocas sobre “bandido bom é bandido morto”. Rio de Janeiro: CESeC, 2017. Disponível em: https://cesecseguranca.com.br/wp-content/uploads/2017/05/CESEC_BBBM_Web_final.pdf. Acesso em: 8 ago. 2020.
Ana Vitória Oliveira Castro - 1° ano de Direito - Noturno.
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