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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O caso Pinheirinho: Hegel, Marx e a atualidade.

No ano de 2004, trabalhadores sem-teto da região do vale do Paraíba e suas famílias iniciaram um movimento de posse em uma área de mais de um milhão de metros quadrados em São José dos Campos, conhecida como Pinheirinho. O terreno em questão se encontrava improdutivo por anos, tendo toda a sua dimensão ocupada por apenas um homem, que servia como caseiro aos donos do terreno, João Alves de Siqueira, cuja função era de assegurar legislativamente a posse daquela terra - sendo obvio aos olhos da lei que a real ocupação e produção ali era inexistente. 
João Alves de Siqueira moveu uma ação de manutenção de posse contra Benedito Bento Filho, conhecido como Comendador Bentinho, que servia, no caso, como representante dos moradores do Pinheirinho. O caseiro foi, porém, um boneco que servia a pessoas maiores politicamente. O terreno onde muitas famílias vinham construindo suas vidas a anos pertencia realmente a uma empresa falida chamada Selecta Comércio e Indústria S/A, que tinha como acionista majoritário o megaespeculador financeiro Naji Nahas. O empresário em questão já havia sido acusado e preso por crimes financeiros, lavagem de dinheiro, desvios de verbas públicas, corrupção; sendo responsável pela crise imobiliário do Rio de Janeiro de 1989, entre outras coisas. 
Sendo assim, a batalha judicial se iniciou, possuindo: de um lado, um especulador criminoso e comprovadamente corrupto, mas que possuía grandes amigos dentro de todas as instancias do poder judiciário e muito dinheiro para comprar aqueles que ainda não tinha; do outro lado, mais de 1500 famílias que esperaram por moradias vindas de programas governamentais a décadas e que ao ocuparem o espaço do Pinheirinho nada mais tinham feito a não ser reclamar a seu direito fundamental de moradia e ali, durante anos, construir com seu trabalho um local meramente digno para si e para suas famílias poderem viver e crescer.  
Embora existisse uma negociação avançada a nível federal para resolver o problema sem o uso da força e mesmo com a ajuda (ou a tentativa desta) da Prefeitura de São José dos Campos e do Ministério Público, assim como o TRF (Tribunal Regional Federal) - que caçou a liminar de reintegração de posse duas vezes - os pobres sofreram por falta de representação, de recursos, e injustiças. Manobras, muitas delas ilegais, como ressuscitar uma liminar já resolvida, fizeram com que o julgamento final, feito pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, fosse de devolução da posse a massa falida. A polícia militar foi acionada e as atrocidades começaram. No dia 22 de janeiro de 2012 os militares invadiram o Pinheirinho atirando balas de borracha e de verdade, jogando bombas de gás e espancando a todos que se colocassem a sua frente - crianças, velhos, deficientes, mulheres; a policia entrou no único refugio dos moradores, suas casas, e brutalmente os arrancaram de lá. Os moradores foram atirados em abrigos provisório, mas mesmo nestes foram brutalmente atacados - havendo nenhuma necessidade de tal violência, principalmente quando não se encontravam mais no Pinheirinho 
Podemos ver neste caso um claro exemplo da reflexão sobre qual a função do Direito dentro do Estado e como devem os juristas agirem. O papel do Estado seria apenas o de seguir as normas escritas e pensar racionalmente? A resposta desta questão seria sim se a observássemos da perspectiva de Hegel, por exemplo. Neste caso, o bairro Pinheirinho pertenceria àquele que tivesse sua posse legal, uma escritura de compra, um nome no cartório, mesmo que nunca tenha pisado ali. Assim, o Estado deveria prezar pela lei e não pela justiça; os juristas deveriam ser instrumentos de um código e não cientistas sociais pensantes.  
Ao tomar como base a perspectiva Marxista, porém, teríamos dois viéses - o viés de como deveria ser o Estado e como ele realmente é. Para Marx o Estado servia como agente regulador num momento inicial. Este Estado que só existiria na primeira fase, chamada de Ditadura do Proletário, deveria agir para garantir condições de vida digna a seus cidadãos, prezar pelas garantias individuais, pela distribuição dos recursos, dos meios de produção (que seriam, agora, estatais) e do capital; dessa forma, as pessoas viveriam em igualdade de condições, exercendo funções diferentes na sociedade, e estas seriam todas e cada uma necessária para o andamento do ciclo social e isto seria reconhecido por todos os seus agentes. Sendo assim, tudo caminharia para um desuso do Estado, que naturalmente se extinguiria.    
O Estado como ele realmente é, porém, é reconhecido por Marx como um instrumento que serve as classes dominantes. Através do uso da força, encarnada nos policiais militares, a burguesia mandaria e desmandaria, pois os pobres, negros e necessitados, nunca teriam condições económicas de participar em pés de igualdade de um processo judiciário, nunca conseguiriam elevar suas vozes perante uma trama de compadrerismo, trocas de favores, golpes e ilegalidades veladas. Sendo assim, o Direito serviriam como uma ferramenta para legitimar toda a opressão e exploração desempenhada pelos burgueses sobre os trabalhadores, que perderiam seus direitos mais básicos em prol do meio de produção capitalista. Hoje em dia, realmente é este o quadro que impera. 
Infelizmente, a visão Hegeliana do Estado como estritamente racional, hoje, perdura entre muitos cidadãos - maioritariamente entre a classe média branca. Esta classe, porém, nunca em sua vida teve um de seus direitos fundamentais negados, nunca sofreu repressão e violência apenas por tentar uma vida digna em um terreno abandonado cujo dono é uma empresa falida, nunca foi discriminado por possuir um tom de pele mais escuro ou por morar em um local periférico, nunca apanhou da polícia por simplesmente andar na rua. A verdade é que o capitalismo e a burguesia provocaram todas essas situações aos podres, os excluiu e os oprimiu - se um trabalhador negro e pobre ocupa uma terra, com certeza não foi escolha dele e sim uma consequência do sistema que o negou diversas oportunidades em favor dos mesmo brancos ricos que os condenam. A todos que usam um discurso de sistematização hegeliana do Estado nos resta a tentativa de mostrar a realidade e discussão; mas, para aqueles que não se preocupam em conhecer os tais assentamentos e o movimento que (embora previsto federalmente) criminalizam e que usam do desrespeito em qualquer roda de discussão, nos resta sentir pena, e esperar que um dia acordem de sua realidade fantasiosa.

Stephanie Bortolaso - Direito Noturno 

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