No livro “A divisão do Trabalho
Social”, Émile Durkheim destaca a diferenciação que sofreu o Direito na
passagem das sociedades pré-modernas para as modernas. Ele afirma que nas
primeiras, o Direito era predominantemente punitivo, tratava-se de uma vingança
da sociedade contra algo que destoasse daquilo que ela considerasse adequado. E
como a concepção sobre o que era adequado era homogênea, ele era aplicado de
forma difusa, por todos os membros da sociedade. Com o advento da modernidade, ainda
segundo Durkheim, as sociedades, as relações sociais e as funções dos cidadãos
tornaram-se mais complexas, de modo que o próprio Direito, acolhendo as
diferenças, tornou-se mais complexo e especializado, e não cabia mais que qualquer cidadão o aplicasse a seus semelhantes. Surgiu,
assim, todo um aparato especializado para a aplicação do Direito, que se tornou
predominantemente restitutivo, ou seja, passou a atuar na reorganização das
atividades sociais, como que “sanando” um membro do corpo social que estivesse
adoecido, em vez de amputá-lo.
Acontece que existem ainda
resquícios da antiga mentalidade nas sociedades atuais; pessoas que não se
sentem satisfeitas com o aparato estatal de aplicação do Direito, por ser este
incapaz de garantir a realização plena da “justiça”. Hollywood nos traz
exemplos grandiosos dessa situação, como no filme “Código de Conduta”, de Gary
Gray, em que um cidadão decide vingar-se por conta própria dos assassinos de
sua esposa e sua filha, ao perceber que o sistema judiciário não tomou as
decisões que ele considerava justas. O filme ilustra, de certa a forma, a
condição daqueles que querem “fazer justiça com as próprias mãos”, que são
muitos, e só não o fazem por falta de recursos e tempo.
Uma das frases mais
significativas da produção, do ponto de vista do Direito, é a do promotor Nick
Rice: “It’s not what you know; it’s what you can prove in Court!”(não é o que
você sabe, é o que você pode provar no Tribunal). Essas palavras, especialmente
em combinação com a cena em que um assassino está prestes a ser liberado pela
juíza por falta de provas de seu crime, apesar de estar mais do que clara sua
culpa, nos leva à reflexão sobre a impossibilidade de se alcançar o que se
considera justo com base no sistema judiciário. É uma constatação indignante
para qualquer cidadão que se diga defensor da justiça, naturalmente, mas há que
se limitar à esfera do possível quando se trata de justiça.
É obvio que a qualquer um é
inaceitável que um assassino a sangue frio seja absolvido por falta de provas,
e naturalmente a resposta de uma pessoa comum seria optar por sua condenação a
qualquer custo, e, claro, culpar o sistema judiciário, sua burocracia, seus
códigos antiquados e limitados. Mas é necessário pensar a situação também pelo
outro lado: se fosse legítimo condenar um culpado mesmo com falta de provas,
também se acabaria por condenar um inocente nas mesmas situações, o que
aconteceria muitas vezes, já que na vida real a culpa não fica estampada na
cara de um homem como parece acontecer nos filmes.
Pode ser mesmo que uma
codificação fixa não seja suficiente para garantir a justiça, mas é um dos
meios encontrados até agora com alguns resultados. E mesmo em países de Common
Law, o Direito não é arbitrário: se limita a uma série de precedentes e
princípios. Se não houver um conjunto de
normas para guiar a aplicação do Direito e cada um quiser fazer justiça a seu
modo, ficaremos sujeitos à selvageria, à anarquia destruidora, e não haverá
justiça da mesma forma, até porque este é um conceito um tanto quanto relativo.
Está claro para todos que esse é um sistema que comporta falhas, mas se
procurarmos um único sistema, em qualquer campo do conhecimento do homem,
manejado por homens, que seja livre de falhas, não seremos capazes de
encontrar.
Isso não significa que o
sistema seja ou deva ser estático, imutável, e não admita aperfeiçoamentos: o
Direito, ao contrário do que afirmam alguns, é um sistema em constante
evolução, em constante processo de mudança e melhoramento. Prova disso é a
legislação ambiental e os direitos homoafetivos existentes atualmente, que há
um ou dois séculos seriam impensáveis, para dar exemplos os mais simplistas.
Assim, é possível inovar o sistema, aperfeiçoá-lo aos poucos, mas daí a querer
construir um reino de plena justiça de acordo com princípios pessoais há uma
grande diferença.
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