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segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O que Boaventura pensa sobre as cotas?

O que o próprio Boaventura pensa sobre as cotas?Que pensa o senhor a respeito da implantação das cotas étnicas como critério para ingresso na universidade?
Fico perplexo perante duas coisas. Por um lado, começa a ser assumida a questão de que esta sociedade é uma sociedade racialmente injusta. As pessoas não conseguem esconder que ela é racista. Ninguém fala sob o argumento da democracia racial. Portanto, há uma fase de transição das mentalidades. De alguma maneira, no fundo, a mentalidade das pessoas continua sendo racista. As pessoas têm dificuldade de reconhecer esse racismo e, portanto, encontram todas as justificações para não tomar as medidas que possam efetivamente eliminar o racismo. Dizem várias coisas. Uma delas é que as cotas vão pôr em causa a qualidade das universidades. A segunda é que o sistema de cotas não é aplicável, porque o país é muito miscigenado e, portanto, já não se sabe quem é preto, quem é branco, e, assim, implantar as cotas não é operacional. A terceira é que a própria comunidade negra está dividida e muitos negros não querem a cota. São argumentos standards. Nos Estados Unidos e em todos os países que aplicaram essas fórmulas, com uma ou outra variante, nós encontramos essa resistência. São formas de resistência que resultam de conflitos internos da subjetividade dos brancos, digamos assim, da sociedade majoritária que não quer assumir totalmente a situação – tenta reconhecer parte dela, mas tem medo de que, ao assumir plenamente, isso vá contra seus privilégios. Vai contra, também, uma certa forma de pensar – a idéia que a sociedade tem que se mostrar multicultural e que temos que nos dar bem. Ora, se temos de assumir as cotas, temos de assumir que não nos damos bem, que, no fundo, somos inimigos uns dos outros. Isso é extremamente ameaçador para alguns – quando, pelo contrário, as cotas são uma forma de solidariedade institucionalizada. Não é uma forma de hostilização social, até porque ela não é vista com um caráter de permanência. Trata-se de um mecanismo corretor que visa dar igual oportunidade – como tenho vindo a defender – para que o mérito se separe totalmente do privilégio. Neste momento, o mérito é limitado pelo privilégio. Portanto, o mérito é sempre menos que mérito, nunca é pleno. As posições são de extrema ambigüidade. Muitos professores progressistas são a favor das cotas. Outros as vão pondo em questão. Por exemplo, o quarto argumento – com alguns sofismas – é que haveria outros mecanismos mais eficazes para a inclusão do que propriamente as cotas. Mencionam os cursos noturnos, cursos pré-vestibular etc. Nada disso é convincente e nada disso vai enfrentar o problema. Eu não penso que as cotas resolvam todos os problemas, mas é evidente que elas têm, para além de sua eficácia instrumental, eficácia simbólica – assume-se publicamente que há uma dívida colonial nessa sociedade. Enquanto a sociedade brasileira não se encontrar nesse tipo de coisas, o presidente Lula ir à África e vestir-se com roupas de escravos é espetáculo, é farsa. Saldar a dívida colonial está nisso: dar uma oportunidade à população negra e índia – uma, vítima de escravatura e, outra, de genocídio. Contra isso, penso eu, não são válidos argumentos só de eficácia. O sistema de cotas é realmente eficaz. Para além de eficaz, é uma questão de princípio que a sociedade tem que admitir. O Brasil tem atrás de si toda uma história que vai contra a solução dessas questões.
Vlad Eugen Poenaru
Na sua opinião, a adoção das cotas seria a confluência da justiça social com a justiça cognitiva?
A justiça social, aqui, vai obrigar a que se comprometa com a justiça cognitiva. São outras leituras, são outros saberes, são outras formas de conhecer a realidade que têm de ser trazidas para a universidade e, mais, obrigando-a a rever o próprio conhecimento científico sobre a sociedade brasileira, que é um conhecimento enviesado, em grande medida. Não estou a dizer por má intenção. Houve, obviamente, grandes sociólogos que chamaram a atenção para esse fato. O próprio Florestan Fernandes foi um dos primeiros a apontar para essa questão. No entanto, mesmo o trabalho dele tem de ser revisto, para não falar dos outros que passaram, pura e simplesmente, por cima da questão racial, ou que a viram como totalmente resolvida, como foi o caso do Gilberto Freyre. As cotas são, para mim, o princípio de uma luta; não o fim de uma luta. É o princípio em um país que vai se encontrar no espelho. Que, se olhando, vai ver muita coisa de que não gosta. O brasileiro é um otimista por natureza. Tem a idéia de país do futuro, um país otimista, um país de grandes potencialidades, que é efetivamente.


Publicado originalmente em: DIVERSA, Revista da UFMG, Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005. Disponível em: https://www.ufmg.br/diversa/8/entrevista.htm

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