ADO 26 uma conquista histórica, mas a luta continua.
A
comunidade LGBTQI+ historicamente tem lutado para defender a igualdade e
respeito à diversidade na escolha da sexualidade. Segundo a Agência Brasil, em
2021 houve 316 mortes violentas de pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e pessoas intersexo, um aumento de 33% em relação ao ano
anterior. Estamos falando aqui de mortes violentas, no entanto as pessoas desse
grupo, têm sido vítimas de assédio, desrespeito, violência física e verbal cotidianamente,
apesar de já haver um entendimento do STF que criminaliza a homotransfobia.
Em 13
e junho de 2019, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
(ADO) nº 26/DF houve o julgamento que equiparou a homotransfobia ao racismo,
conforme a Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Essa interpretação da lei
está dentro do que Bourdieu denomina de “espaço dos possíveis”, como podemos
ver no trecho: “(...) no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é
uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado
potencial.” (BOURDIEU, 1989, p. 213). Pois dessa forma, a hermenêutica permitiu
que os ministros do STF por meio de uma nova interpretação da lei a Lei nº
7.716/1989 para garantir os direitos fundamentais das pessoas que o movimento LGBTI+
abrange.
Bourdieu
(1989, p. 215) fala também sobre Manifestações da universalização/neutralização
na evocação do direito pretendido, contestado ou reconhecido. Algo que pode ser
observado nos seguintes trechos da decisão do acordão da ADO 26:
GÊNERO
– Os integrantes do grupo LGBTI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em
dignidade e direitos e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às
suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que
concerne à sua vivência homoerótica. (BRASIL, 2019, p. 5).
Ninguém,
sob a égide de uma ordem democrática justa, pode ser privado de seus direitos
(entre os quais o direito à busca da felicidade e o direito à igualdade de
tratamento que a Constituição e as leis da República dispensam às pessoas em
geral) ou sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em razão de sua
orientação sexual ou de sua identidade de gênero! (BRASIL, 2019, p. 5).
Segundo
Bourdieu o juiz opera a historicização da norma, “adaptando as fontes a
circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidade inéditas (...)”
(BOURDIEU, 1989, p. 223), graças à essa forma em que os magistrados têm de
também de participarem das respostas das novas demandas da sociedade, foi possível que na ADO 26 o seguinte
entendimento:
Até
que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os
mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5o da
Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou
supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de
gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em
sua dimensão social , ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação
típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei no 7.716, de
08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso,
circunstância que o qualifica , por configurar motivo torpe (Código Penal, art.
121, § 2o, I, “in fine”). (BRASIL, 2019, p. 5).
Ou
seja, na ausência de uma legislação específica orquestrada pelo poder
legislativo, o poder judiciário tem o dever de extrair uma interpretação
constitucional para garantir direitos fundamentais do grupo LGBTI+. Não se
tratando de um ativismo judicial, e sim de garantir constitucionalmente os
direitos fundamentais de uma minoria negligenciada pelas legislações até então.
O que vemos é denominado por Antoine Garapon de “Magistratura do Sujeito” como
podemos ver no excerto abaixo:
“Chama-se
a justiça no intuito de apaziguar o molestar do indivíduo sofredor moderno.
Para responder de forma inteligente a esse chamado, ela deve desempenhar uma
nova fruição, forjada ao longo deste século, a qual poderíamos qualificar de
magistratura do sujeito” (GARABPON, 1999, p. 139)
Nesse
sentido, vemos a tutela dos sujeitos de direito pelos magistrados, a qual
torna-se de suma importância e não podendo ser confundida com paternalismo
judicial. Sem a qual não ocorreria de outra forma, pois o Brasil possuí um
congresso conservador, e este tem se omitido em legislar em causa de minorias
como o movimento LGBTI+.
Dessa
forma, através do ADO 26 o judiciário reclama um raciocínio antecipatório, o
que Garapon (1999, p.146 ) entende como “Antecipação do direito” como podemos
ver no trecho “O direito do juiz não pode ser outro senão um direito para o amanhã.
Mas, então, o que será do princípio sacrossanto da segurança jurídica?” (GARABPON,
1999, p. 139). Na verdade, os direitos a felicidade e à igualdade de tratamento
já são previstos constitucionalmente, mas não eram abordados em lei específica
para esse grupo minoritário que sempre foi vítima de todos os tipos de
violência.
Não há
violência à democracia, e sim uma ação constitucional do direito para que um
grupo minoritário da sociedade sejam reconhecidos como sujeitos de direito. Ao
equiparar a homotransfobia ao racismo, o STF está fazendo o que Michael McCANN caracteriza como: “ (...) mobilização do
direito se refere às ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização
de seus interesses e valores.”. (McCANN, 2010), p. 182). Nessa lógica, a
decisão da ADO 26 foi atender uma demanda de pessoas injustiçadas diariamente e
por em pauta na nossa sociedade a importância da tolerância e diversidade como
um todo, como podemos ver em MacCANN:
“Quando
o tribunal atua em uma disputa particular, ele pode de uma só vez: aumentar a
relevância da questão na agenda pública; privilegiar algumas partes que tenham demonstrado
interesse na questão; criar novas oportunidades para essas partes se
mobilizarem em torno da causa; e fornecer recursos simbólicos para esforços de mobilização
em diversos campos”. (MAcCANN, 2010, p. 186)
Ao
pautar e criminalizar a homotransfobia, o STF está promovendo uma mensagem
tolerância à diversidade e opção sexual das pessoas e colocando na agenda dos
outros atores do estado e da sociedade, o que MacCANN (2010, p. 184) conceitua
como nível instrumental ou estratégico. Abrindo espaço, para que o grupo LGBTI+
continue reivindicando seus direitos básicos e para que outros grupos
minoritários também o façam.
Também
é importante mencionar as mudanças como essa da ADO 26 causam na sociedade.
MacCANN (2010, p. 188) as denomina como “mudanças no nível do poder
constitutivo da autoridade judicial” as quais: “diz respeito aos modos pelos
quais as práticas de construção jurídica dos tribunais são “constitutivas” de
vida cultural” (MAcCANN, 2010, p. 189). Essas mudanças legitimas e
constitucionalmente embasadas passam a pertencer ao seio social.
Como
vimos, a ADO 26 veio em 2019 revela um importante papel dos tribunais
constitucionais na nossa sociedade, eles são responsáveis por agirem em prol
das demandas sociais históricas e revelarem essas pautas aos outros agentes do
estado e da sociedade. Ao mesmo tempo que garantirem o reconhecimento de
direitos fundamentais de grupos minoritários, além de contribuírem
positivamente para a transformação social e aceitação destes grupos como
sujeitos de direito.
Infelizmente,
como abrimos esse texto, pessoas do grupo LGBTI+ continuam sendo vítimas de
violência em pleno ano de 2022, o que significa que apesar dessa conquista
histórica em 2019 promovida pela ADO 26, há muito que se fazer na transformação
a sociedade para aceitação e tolerância da diversidade de identidade sexual.
Joel Martins S. Junior
Aluno do 1º ano de Direito (Noturno) – UNESP/Franca – SP.Referências
BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão 26 Distrito Federal.
Relator: Ministro Celso de Mello. 13 de junho de 2019. O Tribunal, por
unanimidade, conheceu parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão. Por maioria e nessa extensão, julgou-a procedente, com eficácia geral
e efeito vinculante.
Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240
Acesso em: 04 de novembro de
2022.l
BRASIL. Agência Brasil: Número de mortes violentas de pessoas LGBTI+
subiu 33% em um ano. Brasília, 2022.
Disponível em:
Acesso em: 04 de novembro de
2022.
BOURDIEU, Pierre. “A força do
direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico”. O Poder Simbólico.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989 [Cap. VIII, , p. 209-254].
GARAPON, Antoine. O Juiz e a
Democracia: O Guardião das Promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999. [Cap. VI – A
magistratura do sujeito, p. 139-153]
McCANN, Michael. “Poder
Judiciário e mobilização do direito: uma perspectiva dos “usuários” In: Anais
do Seminário Nacional sobre Justiça Constitucional. Seção Especial da Revista
Escola da Magistratura Regional Federal da 2a. Região/Emarf, (2010) p. 175-196.
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