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segunda-feira, 7 de novembro de 2022

ADO 26 e a importância (mas não centralidade) da institucionalização trazida pelos tribunais

A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 foi impetrada pelo Partido Popular Socialista (PPS) e, juntamente com Mandado de Injunção 4733 ajuizada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT), teve como resultado a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em reconhecer a mora legislativa quanto à questão de direitos LGBTQI+, assim como a decisão de se entender ampliativamente o racismo em sua dimensão social, com o consequente enquadramento dos crimes de homofobia e transfobia pela Lei 7.716/1989.

No julgamento do Supremo Tribunal, o entendimento não foi unânime: apesar dos 10 ministros do total de 11 reconhecerem a omissão do legislativo quanto à questão de garantia de direitos e proteção LGBTQI+, a decisão pelo entendimento ampliativo da Lei 7.716/1989 teve 3 votos contrários à decisão, em contraste aos 8 votos a favor. Esse foi o principal conflito observado na discussão: os ministros Lewandowski, Marco Aurélio e Toffoli, juntamente com amicus curiae como a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), tiveram um entendimento diverso dos votos vitoriosos, tecendo uma defesa da legalidade estrita e de que a matéria analisada seria de competência estrita do legislativo, referenciando o princípio da reserva legal. A partir desse contraste de posicionamentos, fica evidente a aplicação prática do chamado “espaço dos possíveis”, conceito elaborado por Bourdieu e que explica as diversas possibilidades de decisão a partir da mobilização de elementos válidos no campo jurídico, possíveis a partir da racionalização e da estrutura jurisprudencial existente. Na decisão, há a disputa pelo “poder de dizer o direito” e pela legitimidade de cada defesa, com a argumentação desenvolvida em cada voto enquanto uma tentativa de se traduzir essa neutralização e universalidade pretendida.

Apesar de a maior parte do conflito da decisão ter sido focalizada em uma possível usurpação de competência pelo STF por “criar” normas, não acredito que esse seja o entendimento melhor fundamentado. Como desenvolvido pelo ministro Fux em seu voto, o STF apenas exerceu sua função de intérprete constitucional ao aplicar à Lei 7.716/1989 uma interpretação em consonância com os fundamentos e princípios constitucionais. Não se “legislou”: houve, na verdade, uma ampliação do entendimento social de racismo, interpretando-o enquanto uma manifestação de poder que  busca a manutenção da alteridade, subjugação e violação da dignidade; interpretação acolhida pela Constituição. Como na fala de Gilmar Mendes, percebe-se essa possibilidade ampliativa no próprio texto e essência constitucional: “Não vejo como se possa atribuir ao texto constitucional significado restrito, isto é, no sentido segundo o qual o conceito jurídico de racismo se divorcia dos conceitos histórico, sociológico e cultural. O que a nossa Constituição visa a coibir é a discriminação inferiorizante, a qual ela repudia com a alcunha de ‘racismo'”.

Como expresso no voto do ministro Alexandre de Moraes, em que este assinala “Assim como é missão constitucional do Congresso Nacional legislar, com absoluta independência; é dever constitucional do Supremo Tribunal Federal garantir e concretizar a máxima efetividade das normas constitucionais, em especial dos direitos e garantias fundamentais”, percebe-se a necessidade da historicização das normas conforme o espaço dos possíveis vai se transformando, sempre com a prerrogativa de efetivação de direitos.

Como citado anteriormente, não acredito que tenha havido um “ativismo judicial” por parte dos ministros a partir de uma suposta usurpação de poderes, mas sim uma efetivação de direitos fundamentais. Como no voto da ministra Rosa Weber “[...] o direito à própria individualidade, identidades sexual e de gênero, é um dos elementos constitutivos da pessoa humana”. Nesse sentido, quando não se delimita formalmente punições às condutas homofóbicas e transfóbicas, observa-se um desrespeito ao artigo 5º inciso XLI da Constituição Federal, que determina que qualquer “XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”; o legislativo foi negligente quanto à seguridade jurídica desse grupo. Surge, assim, essa perspectiva da “magistratura do sujeito”, desenvolvida por Garapon com o recente movimento de destaque dos tribunais na proteção do indivíduo: o Judiciário consolida-se enquanto uma esfera de garantia de direitos fundamentais e de proteção a grupos marginalizado e até mesmo negligenciados por outras esferas de poder.

Por fim, não se pode esquecer que o Judiciário não possui um papel ativo e autônomo, como muitas vezes se distorce: um de seus aspectos mais basilares é o de que este só atua quando provocado por outrem. Assim, o pleito dessas ações impetradas no STF por grupos de representação social, como a própria Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT), é simbólica ao refletir as demandas e lutas desses grupos com direitos em disputa, que apenas acionam o Tribunal como forma de canalizar e institucionalizar suas demandas. Como desenvolvido por McCann, essa “mobilização do direito” é realizada por uma interação complexa de diversos agentes e grupos; os tribunais figuram enquanto “apenas um vínculo institucional ou um ator nos complexos circuitos de disputas políticas''. Dessa forma, reconhece-se a importância dessa institucionalização trazida pelos tribunais, mesmo que não sua centralidade. Um dos aspectos de relevo é a influência dessas decisões em nível estratégico: pode-se perceber uma mudança no próprio espaço dos possíveis, já que as decisões dos tribunais representam um aparato legal para fundamentações futuras, trazendo maior segurança jurídica ao grupo protegido institucionalmente. Como consequência dessas movimentações estratégicas, surgem as mudanças constitutivas: há impactos nos comportamentos sociais, já que mudam-se os limites do “aceitável”. Exemplo prático é a condenação cada vez mais comum de humoristas por “piadas” com grupos marginalizados que outrora eram entendidas como meras brincadeiras. Na condenação de Bento Ribeiro e Dani Calabresa à indenização por dizeres homofóbicos em tom jocosa durante um programa de TV, observa-se nitidamente esse reflexo na consolidação e reafirmação de direitos na decisão da juíza: "Ainda que os réus aleguem que as falas seriam jocosas e não teriam intenção de ofender, os comentários direcionados ao autor constituíram notória ridicularização de sua identidade. A homoafetividade, historicamente marginalizada, deve ser protegida de comportamentos degradantes". Assim, associa-se uma série de precedentes positivos à questão, aliado a uma mudança de postura institucional e social dos agentes


1. "Dani Calabresa é condenada a pagar R$ 15 mil por homofobia"- https://tnonline.uol.com.br/noticias/revista-uau/dani-calabresa-e-condenada-a-pagar-r-15-mil-por-homofobia-673098?d=1


Isabella Neves- 1º ano matutino

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