A
ADPF 54, enquanto julgado que determina a legalidade do aborto em casos de
fetos anencéfalos, se mostra uma grande representação da evolução do “espaço
dos possíveis” que traz Pierre Bourdieu em seu texto “O Poder Simbólico”.
Assim,
compreender a mulher como um ser que existe por si e não apenas a fim de
procriar é uma ideia que, ainda hoje, não é totalmente aceita e estabelecida.
Ao ver diversos casos, como de crianças estupradas que têm seu direito ao
aborto violado, entende-se que a vida da mulher é a vida priorizada somente em
raríssimos casos. Dessa maneira, inova o STF ao aceitar o argumento que afirma
a analogia à tortura em casos que se compele uma mulher a manter uma gestação
que não irá gerar uma vida, como a de fetos anencéfalos.
Como bem exposto pelo Dr. Mário Ghisi em audiência da ADPF 54: “É constrangedora a ideia de outrem decidir por mim, no extremo do meu sofrimento, por valores que não adoto. É constrangedor para os direitos humanos que o Estado se imiscua no âmago da intimidade do lar para decretar-lhes condutas que torturam.”. Imaginar criminalizar uma mulher nessa situação é, de fato, desumano; esperar que se gere uma vida, sem poder atribuí-la um nome, uma ideia de futuro, jeitos e manias, é indubitavelmente manter essa mulher em um estado de tortura psicológica profunda, por meses.
Entender
que a gestação não é o que mais necessita de proteção quando tantos outros
direitos fundamentais são atacados, é entender a mulher como um ser humano que
merece, por exemplo, o seu direito à dignidade. Assim, percebe-se que esse “espaço
dos possíveis” se expandiu ao compreender a necessária separação de valores religiosos
e morais da racionalidade que deveria ser característica primária do Direito. Por
mais que isso possa ser visto como evolução, é necessário que se mantenha a
atenção quanto à atuação das classes dominantes, que manipulam o dito “espaço
dos possíveis” de acordo com seus “habitus”, sua criação opressora e
exploradora, que sempre tenderá a manter os espaços de poder.
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