PIERRE
BOURDIEU DESCE AO STF
O tema em questão é a legalidade da interrupção da gestação
da mulher de feto anencéfalo, tendo em vista seus direitos sexuais e
reprodutivos, além, é claro, do seu direito à saúde, autodeterminação e
dignidade. Neste sentido, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente
a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 de 12 de abril de 2012,
ou seja, os Ministros acordaram na inconstitucionalidade da interpretação do
aborto de fetos sem viabilidade de sobrevivência à luz dos artigos 124, 126 e 128,
incisos I e II, do Código Penal. No entanto, como tal problemática, embora
agora com decisão favorável da Suprema Corte, é complexa, observa-se a
imprescindibilidade de a analisar com base no pensamento de Bourdieu.
Em primeiro lugar, o confronto presente na lide em questão
é aquele entre conservadorismo e liberalismo dos costumes, isto é,
reacionarismo por parte de uma parcela majoritariamente marcada pela
religiosidade e reconhecimento de direitos femininos tão arduamente
conquistados pelo feminismo, respectivamente. Segundo o sociólogo francês
Pierre Bourdieu, a configuração do “espaço dos possíveis” é estabelecida pelo
raciocínio jurídico dos textos do campo que marcam os limites e as saídas admissíveis
para conflitos; a título de ilustração, o CP tipifica o aborto praticado pela
gestante ou com o consentimento desta e o aborto provocado por terceiro com o
consentimento da gestante (até o julgamento do Supremo só era permitida a
interrupção da gravidez resultante de estupro ou quando a vida da mãe corre
perigo), porém, desde o final da década de 80, alvarás autorizantes de abortos
de bebês com malformação parcial ou total do cérebro passaram a ser concedidos
por magistrados tupiniquins. Os doutrinadores de Direito Penal concordam com
tal tendência, prova cabal disso é Cezar Roberto Bitencourt que afirma que “No
atual estágio, a Medicina tem condições de definir com absoluta certeza e
precisão eventual anomalia do feto e, consequentemente, a inviabilidade de vida
extrauterina. Nessas condições, é perfeitamente defensável a orientação do
Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal, que autoriza o aborto
quando o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou
mentais, ampliando a abrangência do aborto eugênico ou piedoso.” (2022, p. 125).
Mediante o exposto, clara é a divergência entre grupos específicos da
comunidade social: um acredita que o Brasil não está pronto para conceber o
aborto de fetos anencefálicos e outro acredita que já passou da hora desta
previsão legal tornar-se hegemônica.
Em segundo plano, a racionalização do Direito, melhor
dizendo, a tentativa de se resolver o caso por meio de somente concatenações de
princípios jurídicos, com o objetivo de se alcançar a maior imparcialidade
possível dos juízes, mostra-se em três etapas do processo: na tese do Advogado
da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), Luís Roberto
Barroso, no voto contrário do Ministro Ricardo Lewandowski e na solução do caso representada pelo
voto do Relator Marco Aurélio. Barroso invoca os direitos reprodutivos da
mulher, Lewandowski, o direito à vida do nascituro, enquanto Marco Aurélio
relembra a todos o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Depois disso, só
resta situar a norma no tempo e no espaço, em outras palavras, historicizá-la.
Talvez em 2012, oito anos depois da ADPF ter sido impetrada no Supremo,
realmente a decisão do Tribunal em “ratificar” o aborto de fetos sem
viabilidade de vida fosse um grande passo em um País marcadamente conservador,
porém, depois de uma década, o mundo apresenta-se mais uma vez desfavorável aos
direitos reprodutivos das mulheres (revogação de Roe v. Wade pela
Suprema Corte nos EUA, como exemplo), é por isso que o STF deve novamente
cumprir seu papel de guardião da Constituição de 1988, onde a igualdade de
direitos é consagrada, e guiar o continente rumo a uma nova etapa de proteção
de prerrogativas jurídicas que será “personificada” na garantia irrestrita do
direito ao aborto.
Aluno: Thiago Ozan Cuglieri
Curso/Semestre/Período: Direito/Segundo/Noturno
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