Idealização do trabalho:
Imagem retirada de: http://grazaza.blogspot.com.br/2012/01/mafalda-sua-danada.html
Operário do mar
Operário do mar Na rua passa um
operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso
político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos
grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas
mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que
carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não
sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o
grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário
não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam
da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados,
o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali
corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria
vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que
não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze
a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me
obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos
implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que
isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma
santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente
banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos
exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está
cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas
mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do
seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e
estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em
terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós,
seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se
contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo
e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe
se um dia o compreenderei?
Carlos Dummond de Andrade
Desirrè Corine Pinto - Direito Noturno
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