O sociólogo Pierre Bourdieu,
em sua obra “O Poder Simbólico”, discorre acerca da ciência rigorosa do
Direito, a qual enfoca este como sendo objeto de estudo, devendo evitar-se o
instrumentalismo e o formalismo. Enquanto o primeiro refere-se à ideia de
Direito a serviço da classe dominante, o segundo explicita-se
como um entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões
sociais. Assim sendo, a ideologia de Bourdieu pode ser empregada em um contexto
relativamente atual, no qual a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) n.º 54, exteriorizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde (CNTS), pretende assegurar o direito de escolha da gestante pela
interrupção (ou não) da gravidez em caso de feto anencéfalo.
Tal condição clínica pressupõe uma má-formação grave do
sistema nervoso central, sendo esta incompatível com a vida a longo prazo. Desse
modo, é constatado que o feto anencéfalo não representa uma vida em potencial,
uma vez que o início da vida cerebral não concretiza-se. Nesse contexto, o
instrumentalismo firma-se em uma sociedade cuja burguesia, não raro,
conservadora, dita os possíveis desencadeamentos da vida jurídica e suas consequências
danosas para aqueles os quais não pertencem à classe dominante. Tal qual o
instrumentalismo, o formalismo evidencia-se através do controle religioso sobre
um Estado constitucionalmente tido como laico, fato averiguado através da presença
de uma forte bancada religiosa no poder.
Nessa conjuntura, a aliança entre burguesia conservadora
e bancada religiosa culmina em medidas as quais propõem ideologia “pró-vida” e elucidação
do princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao feto anencéfalo. Tais
fatos não levam em consideração o sofrimento físico e psíquico o qual deve ser
enfrentado pela gestante em caso de uma gravidez de feto anencéfalo e nem o
princípio da dignidade da pessoa humana em relação à esta. Em uma sociedade
embasada em princípios de liberdade, previstos na Constituição Federal, a
escolha pela interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo não deveria
estar sendo posta em xeque, visto que deveria versar sobre o livre arbítrio
feminino para agir de acordo com convicções pessoais.
Portanto, a inexistência de uma vida em potencial em anencéfalos
atrelada à criminalização da prática do aborto em tal situação é responsável
por imensurável sofrimento à várias gestantes que encontram-se na referida
condição, sendo observada uma transgressão ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Dessa maneira, decisões jurídicas fundamentadas no conservadorismo de
uma classe dominante, bem como em acepções religiosas em uma sociedade laica,
devem ser repensadas. Como consequência, o instrumentalismo e o formalismo usualmente
combatidos por Bourdieu não firmar-se-ão em solo tupiniquim, corroborando
com preceitos constitucionais e democráticos.
Isadora Mussi Raviolo - 1º ano Direito (Noturno)
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