Pierre Bourdieu foi um sociólogo francês que se
destacou pela abordagem acerca da luta simbólica, sobretudo no campo jurídico. Este,
em sua concepção, consiste na esfera das relações jurídico-políticas em que se
desenvolve categorias especificas que exigem recursos para o poder simbólico. O
Direito, para ele, deve se portar de modo a evitar o excesso, ao mesmo tempo,
do instrumentalismo, a ideia de que ele deve refletir o que a força social
dominante exige, e do formalismo, que o considera como uma força autônoma capaz
de retirar de suas próprias referências internas os fundamentos necessários.
Concebe, assim, o Direito como um campo com autonomia relativa, sendo razoavelmente
permeável à dinâmica social e, da mesma forma, capaz de retirar de si mesmo os
elementos necessários para sua manutenção e progresso, sendo capaz de conciliar
um equilíbrio entre o instrumentalismo e formalismo. Promove, com isso, ao
mesmo tempo, uma crítica a Kelsen e aos marxistas estruturalistas.
O campo
jurídico seria composto, portanto, de uma lógica duplamente determinada: de um
lado, pelas relações de forças específicas que lhe conferem a sua estrutura, ou
seja, os conflitos de competência que nele têm lugar, e, do outro, pela lógica
interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o “espaço dos
possíveis” e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas. A
dinâmica do Direito engendra a “lógica positiva da ciência” com a “lógica
normativa da moral”, reguladas estruturalmente na concorrência no âmbito desse
campo, o que permite que ele imponha universalmente ao reconhecimento por uma
necessidade simultaneamente lógica e ética.
A
sociologia de Bourdieu pode ser aplicada, em especial no que diz respeito à
autonomia relativa do Direito e do campo jurídico, ao caso da ADPF 54, de abril
de 2012. A partir dessa ação, solicitada pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde do Brasil, o STF decidiu que a interrupção da gravidez
em caso de anencefalia do feto não pode ser considerada crime. Com um placar de
8 a 2, os ministros julgaram procedente a ADPF para declarar a
inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção deste tipo
de gravidez seria tipificada em alguns artigos do Código Penal. Uma medida como
essa evidencia ser inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem
chances de sobreviver, como foi provado por estudos da medicina, prevaleça
sobre as garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à
autonomia, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas
previstas na Constituição. Por não ser uma “vida em potencial”, como salientou
o Ministro relator Marco Aurélio, o feto anencéfalo não possui proteção
jurídica de sua vida.
É
importante ter em mente, ainda, a liberdade da mulher em sopesar valores e
sentimentos da ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção ou
não da gravidez, não cabendo ao Estado tomar tal decisão. Não se pode deixar de
lado também os riscos que a gravidez de um feto com anencefalia traz à mulher,
envolvendo não só seu corpo, mas sua saúde mental. Levando-se em conta o fato
de ter se tornado comum e relativamente simples descobrir a anencefalia fetal,
a não inclusão na legislação penal dessa hipótese de excludente de ilicitude é
uma omissão legislativa, uma ofensa à integridade física e psíquica da mulher.
A discussão teve grande repercussão, criando de um lado um grupo de defensores
do direito das mulheres de decidir sobre prosseguir ou não com a gravidez, e,
do outro, aqueles que acreditam ser a vida intocável, mesmo no caso de um feto
sem cérebro. Este último grupo é predominantemente composto por religiosos, o
que vai em sentido contrário à noção de que, em um Estado laico, as concepções
religiosas não podem guiar as decisões estatais.
A
aplicação de Bourdieu em um caso como esse se dá, principalmente, levando-se em
conta que a transformação do Direito advém de sua relativa permeabilidade às
dinâmicas sociais, e foi exatamente isso que aconteceu no caso da ADPF 54.
Diante da influência de outras áreas do conhecimento e sociais, como a medicina
nos estudos acerca da anencefalia fetal ou as discussões em defesa da liberdade
da mulher, a permissão da interrupção da gravidez nesses casos foi uma
conquista, um grande avanço. Consistiu, assim, numa adaptação a circunstancias
novas, a partir da historicização da norma e na permeabilidade às influências
externas, como teorizou Bourdieu. A ADPF, por isso, pode ser vista como uma
quebra do formalismo da norma, atingindo outros níveis além do Direito, o qual
precisou se adaptar, editar sua realidade normativa sobre a interrupção da
gravidez visando atender às condições materiais. O Direito, dessa forma, se
flexibilizou para conciliar o desacordo formal com a realidade material,
cumprindo o papel proposto pelo sociólogo francês.
Observa-se,
portanto, a importância do Direito como luta simbólica e a necessidade de que
haja equilíbrio entre o formalismo e instrumentalismo, visando uma autonomia
relativa que se mostra também permeável à dinâmica social. Isso se manifesta em
casos de conquista de direitos, como na descriminalização da interrupção da
gravidez em hipótese de feto com anencefalia, na qual está em jogo questões
como o direito da mulher de autodeterminar-se, de escolher e agir de acordo com
a própria vontade, além da comprovação de não ter condições de vida um feto
nessa situação. Trata-se da formação de um horizonte de novas possibilidades, a
partir da ruptura com o aspecto estritamente formal, permitindo ao Direito
receber influências de outras áreas do conhecimento para adaptar-se à medida
que for necessário. Apesar de ainda não representar uma liberdade total da
mulher sobre seu corpo, o que somente será possível com uma total
descriminalização do aborto, a conquista da ADPF 54 já se mostra de
significativa relevância na busca pela ampliação dos direitos e na adaptação do
campo jurídico às demandas sociais.
Gustavo Garutti Moreira –
1º Ano Direito Matutino
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