Em um tempo em que tanto se defende ideais como liberdade, independência e afirmação social, poucas críticas podem ser tão mal recebidas do que aquelas centradas no questionamento da efetividade da capacidade social de autodeterminação dos indivíduos.
Hoje, dificilmente é possível encontrar em meio à multidão um estoicismo autêntico, ou uma disposição por parte dos indivíduos em crer que exista um sentido previamente delimitado para suas vidas, independentemente de suas escolhas. Na realidade, boa parte das pessoas afirmaria, sem grandes dificuldades, possuir naturalmente ao menos um considerável controle sobre as linhas gerais de seus gostos, crenças, estilo e especialmente de sua personalidade.
Encarar a possibilidade de que o curso da sua história esteja pré-condicionado por critérios e forças além de sua esfera de ação, pode ser uma experiência muito aterradora além de despertar um forte impulso de resistência; aliás, outro ideal muito defendido atualmente.
Em sua trilogia "Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colono”, o dramaturgo Sófocles busca discorrer, através da história da família de Édipo, justamente sobre a impossibilidade humana de se opor ao destino previamente determinado.
Assim, o relato revela como de uma maneira ou de outra, apesar das iniciativas dos personagens de evitar o terrível destino de sua família, o qual foi previsto em uma profecia, eles falham e a medonha previsão se cumpre integralmente. Dessa maneira, o Mito de Édipo coloca o peso da autonomia individual como algo diminuto frente às forças exógenas do cosmos, as quais desenham os contornos da vida humana.
Nesse interim, embora possa ser incômodo é perfeitamente razoável indagar-se se os atores sociais e suas instituições não estariam, de alguma forma, igualmente condicionados por elementos além de sua individualidade. Assim, os estudos de Marx e Engels, no âmbito da sociologia, contribuíram não só para afirmar que existem critérios últimos que delimitam a dinâmica coletiva e seus componentes, como também pretendeu, por meio de seu Materialismo Histórico, identificar tais critérios.
De alguma maneira, o positivismo já havia se aventurado, de um modo incipiente é verdade, a propor um sentido imanente e imperativo que regulamentava tanto as instituições quanto os indivíduos dentro de uma sociedade; este sentido derivava das chamadas Leis Positivas. Entretanto, é mérito do socialismo científico de Marx e Engels empregar um estudo sistemático nesse intento, mais especialmente com o fito de provar que são os critérios materiais essa força última a reger todo o cosmo social.
De acordo com essa lógica, a maneira que a sociedade organiza suas forças produtivas visando sanar suas necessidades materiais (Economia), repercutiria na forma como seria ordenado todos os demais aspectos da vida social, fosse política ou culturalmente. Desse modo, até mesmo os valores e princípios vigentes em um período corresponderiam ao seu respectivo arranjo econômico.
No Materialismo Histórico, a economia é para o Corpo Social e seus atores, o que o destino é para Édipo e seus familiares: uma força inexorável que desenha os contornos da vida social, sem deixar muito espaço para a originalidade e inciativa próprias.
Logo, a rigor, nem o comportamento nem as percepções individuais são exatamente autorreferenciadas, o que reduz em menor ou maior grau a perspectiva de um controle considerável que as pessoas supõem possuir sobre si mesmas, suas convicções e personalidade. Isto acaba implicando em uma ilusão de autonomia, uma vez que não pouco do que o indivíduo é está restringido e definido por aquilo que o Modo de Produção dita.
No final da trilogia do dramaturgo grego, ao ver consumado o destino profetizado para sua família apesar de todas as iniciativas contrárias, Édipo perfura seus olhos num ato de angústia, encerrando a tragédia.
Essa atitude do personagem mitológico é capaz de exprimir, em certa medida, a conduta de boa parte das pessoas que, fervorosas amantes que são dos ideais de liberdade, autonomia, afirmação e resistência, fecham os olhos para a realidade desses critérios últimos que condicionam previamente muitos aspectos de suas próprias vidas em particular e da sociedade no geral; dessa forma, furtando-se de encarar uma possibilidade tão aterradora.
Em contrapartida, também se tem o impulso de resistência diante do enfado do destino, e com este se identificam indubitavelmente Marx e Engels – suscitando novamente a indesejada questão da efetiva potência dessa autodeterminação para gerar impactos no cosmo social.SAMUEL DE ARAÚJO SANTOS PISSINATO
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