No mês de Outubro
de 2015, pixações de cunho fortemente racista foram encontradas nas paredes do
banheiro da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, estampando
manifestações de ódio quanto à adoção de cotas sociais e raciais e contra os
estudantes negros do curso (10, precisamente, em um total de 500 alunos).
Frente à frases como “fora macacos cotistas” e “aqui é lugar de gente
branca e inteligente”, o movimento negro se organizou para realizar uma
série de intervenções nas classes durante as aulas, intervenção da qual recorto
um pedaço do discurso para dar início aos pensamentos desse texo: “meritocracia
é muito fácil, para quem já nasce em cima do pódio”.
Há
de se considerar insano qualquer que afirmar em plena consciência, como fez o
Partido Democratas (DEM) ao ajuizar a arguição de descumprimento de preceito
fundamental com relação à adoção do sistema de cotas na Universidade de
Brasília, que (sic) não existe racismo no Brasil. Insano, ou dotado de
má-fé. Assumir que o racismo não existe porque não há a manifestação visual do
ódio racial a todo o momento, alicerçado em argumentos de que a miscigenação
étnica no país pôs fim à segregação racial, é a negação de um problema
gigantesco e a contribuição mais eficaz para a perpetuação deste por mais anos
a fio. Não só existe o racismo, ora velado, ora gritante (das platéias em
estádios de futebol aos comentários na internet); como ele é também estrutural
e internalizado e reproduzido em cada brasileiro que teve a “sorte” na loteria
genética de não vir ao mundo marcado pela cor da pele preta - cada um de nós, e
aqui justamente me incluo como branca e privilegiada, é racista. Somos racistas
não apenas quando manifestamos ódio, mas também quando nos calamos frente a
ele; somos racistas quando não problematizamos a quantidade de negros em uma
sala de aula prestando o vestibular em comparação com a quantidade de brancos
concorrendo nesse mesmo processo, quando não problematizamos a quantidade de
negros estudando em uma universidade em comparação com a quantidade de negros
limpando o nosso chão. E é da constante auto-desconstrução que me sirvo para
afirmar que somos racistas, e muito, quando não defendemos o sistema de reserva
de vagas com base em critério étnico-racial por uma crença cega na
meritocracia.
Boaventura
de Sousa Santos, em seu texto “Poderá ser o Direito emancipatório?”, expõe uma
série de problemas que acometem o século XXI quanto à crise contratualista
entre Estado e Povo proporcionada pelo sistema capitalista. De sua
conceituação, apreende-se os termos de fascismo social e estratificação da sociedade civil, e dentro
destes a classificação dos estratos sociais em sociedade civil íntima, sciedade
civil estranha e sociedade civil incivil. Pode-se caracterizar a sociedade
civil íntima como aquele seleto grupo de pessoas hiper-incluídas no
Contrato Social e que mantém uma relação próxima com o Estado e com o Mercado,
podendo desfrutar de uma gama de direitos político-civis, direitos
sócio-econômicos e direitos culturais - está aqui a elite brasileira,
hegemonicamente branca e detentora dos meios de produção e riqueza. Dentro da
sociedade civil estranha temos os parcialmente incluídos, parcialmente
excluídos, que pode exercer livremente os seus direitos civís e políticos
(embora, muitas vezes, não o façam por falta de esclarecimento quanto à noção
de cidadania) mas tem acesso restrito aos direitos sociais e culturais - nesse
grande conjunto estão as classes média-baixas e pobres da população, em que a
presença de negros já é notadamente maior. Por fim, na sociedade civil incivil,
temos aqueles totalmente excluídos, maiores vítimas do fascismo social,
marginalizados e socialmente invisíveis aos olhos da elite - não causará
surpresa o fato de que essa parcela paupérrima de população é majoritariamente
negra, e é esse o fator mais gritante do racismo no Brasil.
Se
negros já encontram dificuldade de inclusão, aceitação e reconhecimento frente
aos brancos (por mais absurdo que isso soe em pleno ano de 2015), a realidade
enfrentada pelos negros pobres é ainda pior. Ainda dentro dos conceito
de apertheid social de Boaventura, a grande parte pobre e negra da
população está submetida a um Estado Autoritário, no ambiente das favelas e da
intervenção policial, enquanto a seleta parte rica desfruta de um pleno Estado
de Direito. São pessoas que muito, muito raramente têm acesso a uma educação
capaz de proporcionar condições mínimas para a concorrência em um processo
seletivo de uma universidade pública, sendo muito frequente a não completude
sequer do ensino médio.
Não
problematizar e buscar ferramentas para corrigir essa dívida histórica e triste
realidade é colaborar com a perpetuação de um sociedade racista e opressora,
que não se incomoda com o sangue negro quando ele escorre nas ruas, mas se
incomoda com a presença negra na Universidade, nos shoppings da zona sul, no
Supremo tribunal Federal, na presidência de um país. A necessidade de compensar
séculos de escravidão, seguidos por mais séculos de abandono e
marginalização, é primordial para o
alcance de uma sociedade democrática de fato, igualitária formal e
materialmente, plural e saudável; e é preciso utilizar do Direito, como
ferramenta para a concretização desse horizonte não excludente, não
segregacional, não patriarcal e não elitista - nas palavras de Boaventura: “O
Direito pode ser emancipatório, na medida de evitar e minimizar processos de
exclusão”.
Termino
esse texto com a frase que encerrou também o discurso intervencionista do
movimento negro da USP de Ribeirão Preto: “As cotas são só o começo - vocês
nos devem até a alma”.
“[...] Quer saber
o que me move? Quer saber o que me prende?
São correntes
sanguíneas, não contas correntes
Não conta com a
gente pra assinar seu jornal
Vocês descobriram
o Brasil, né? Conta outra Cabral
É um país
cordial, carnaval, tudo igual
Preconceito
racial mais profundo que o Pré-Sal
Tira os pobre do
centro, faz um cartão postal
[...]
A
guerra não é santa nem aqui e nem em Jerusalém
É o
Brasil da mistura, miscigenação
Quem
não tem sangue de preto na veia deve ter na mão”
(Inquérito
- Eu só peço a Deus)
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