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segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Seria a via parlamentar emancipatória?

Segundo Boaventura de Souza Santos, grande intelectual português, o Direito Ocidental como o conhecemos passa por uma crise severa e crônica. A ascensão do neoliberalismo em fins da década de 70, para o autor, serviu apenas para suprir e maximizar o que o capitalismo como um todo vinha construindo desde a revoução industrial: um Direito aparatado e subserviente aos interesses do mercado, embarcando a todos no denominado fascismo social, que para o autor enseja um verdadeiro apartheid social, territorial e econômico. Boaventura consegue em seu artigo identificar duas vias pelas quais o direito poderia ser, de certa forma, mais justo para a classe oprimida: a via parlamentar e a via revolucionária. Uma tenta jogar através das regras do sistema, a outra tenta quebrar o próprio sistema.
Visto o claro fracasso da via revolucionária por todos os regimes ditatoriais no século passado, sobra a via parlamentar. Dentro das principais ações tomadas pela via parlamentar está a política de cotas raciais em concursos para o ingresso em instituições estatais. Logo após a Universidade Nacional de Brasília adotar critérios étnico-raciais e sociais para o ingresso em seu ensino, surgiram vários movimentos contrários, um deles protagonizado pelo DEM (Democratas) baseando sua acusação na igualdade formal garantida pela Constituição brasileira.  
Em contraposição à posição do DEM e de tantos outros agentes da sociedade, há vários motivos para a adoção de cotas raciais e sociais nas instituições públicas, visto que a imensa maioria da população pobre tambpem pe negra. Um desses motivos, um tanto utilitarista, é que a política de cotas aumenta, indiretamente, o número de brasileiros com diploma sem aumentar o orçamento destinado à educação superior. O custo de um estudante é o mesmo, não importa qual seja a renda de sua família. A diferença então é que quando um estudante de família rica perde o vestibular da universidade pública, ele provavelmente procurará uma faculdade particular para seguir seus estudos. No caso do estudante de família pobre/negra, esta opção não existe.
Portanto, quando o estudante rico vai para a universidade estatal, o dinheiro público é gasto sem que o número de estudantes com acesso à universidade aumente. No caso do estudante pobre, a história é outra – a ele, sem o subsídio, quase sempre restaria a opção de procurar um emprego compatível com sua formação deficiente.
Podemos então derivar um outro argumento, mais humanitário: é certo que toda vez o Estado cobra imposto, ele retira das famílias uma possibilidade de consumo, dado que o dinheiro que foi para o governo certamente será utilizado para outra coisa. Porém o efeito não é o mesmo sobre todas as famílias na sociedade. A família pobre/negra deixa de comprar carne por conta do imposto; a rica talvez deixe de gastar com lazer, viagens, etc. Tratam-se ambos de fins legítimos, é claro, mas não de mesma urgência. De novo, se o dinheiro dos impostos será investido na educação de uma pessoa, que seja com aquela que é mais prejudicada pela cobrança. No caso da família pobre/negra, este dinheiro provavelmente seria destinado a suprir uma necessidade mais básica do que a da família rica. No Brasil, onde pobres pagam a maior parte dos impostos, esta equação ganha contornos ainda mais cruéis. O governo brasileiro atua rotineiramente como uma máquina que transfere dos pobres aos ricos, lhes negando qualquer possibilidade de ascensão social por conta própria. Dessa forma é inteiramente legítimo que, neste caso, os mais prejudicados por esta dinâmica tenham preferências nas vagas de universidades estatais.
Os opositores da política de cotas afirmam que trata-se apenas de um paliativo, um instrumento para mascarar as péssimas condições do sistema estatal de ensino médio. Este argumento, porém, não aborda o ponto central: mesmo que o estudante pobre tivesse uma educação formal idêntica à do estudante rico, ainda assim faria sentido reservar vagas àqueles que sem elas não chegariam à universidade. Também é argumentado que todo processo seletivo deve privilegiar o mérito, selecionando os melhores alunos independente da renda familiar ou situação social de suas famílias. O argumento também parece bom, mas estudos recentes demonstram que o desempenho dos cotistas não é inferior ao dos não-cotistas.
Quando estudantes de famílias pobres tem acesso a uma educação tão boa quanto a destinada aos estudantes de famílias ricas, o rendimento deles passa a ser semelhante, que é o que acontece nos campi onde instituiu-se a política de cotas. E seria mesmo o mérito a verdadeira razão dos vestibulares? Muitas vezes, a vaga na universidade é disputada entre alunos ruins ou medianos dos melhores colégios e os melhores alunos dos piores colégios. O vestibular em geral privilegia o primeiro, que recebeu uma formação totalmente direcionada para a prova, em detrimento do segundo, que teve que se virar sozinho. É provável que o estudante da rede pública tenha estudado mais, e nada nos permite afirmar que há uma diferença de capacidade entre os dois; o desempenho de qualquer aluno dentro faculdade depende de muitos fatores que vão muito além da sua colocação num exame vestibular.

Túlio Tito Borges - Direito Diurno

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