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domingo, 8 de maio de 2022

"E no mundo dizem que são tantos Saltimbancos como somos nós"

 A Ditadura Militar começa de forma efetiva como o Golpe contra João Goulart, no dia 31 de março de 1964, inicia-se, neste momento, um dos períodos mais obscuros da história do Brasil. As razões dos militares quanto a essa ação se davam com o fim de manter a "ameaça comunista" longe do país, instaurando, desta forma, um regime rígido e opressor. Com isso, os militares brasileiros buscavam uma manutenção da Ordem vigente, que começava a desintegrar sob seus olhos, com avanços de direitos da Classe trabalhadora e mais economicamente desfavorecida, o que incomodava os ideias dados Positivistas que buscavam pela  "Ordem e o Progresso" naquela sociedade, sendo esta uma ideia  Comtiana seguida desde a Independência Brasileira. Tal período, de fato, fora extremo e terrível, e o Governo Brasileiro detinha de suas inúmeras formas para driblar o Direito Internacional e as convenções dos Direitos Humanos, levando a compreensão real da situação vivida no país só tempos depois. Tal panorama tornava a vida brasileira cada vez mais complicada, o que levava os indivíduos a buscarem formas de resistência. 

Dentre esses meios de resistência é reconhecido que, durante a ditadura militar brasileira, muitas foram as formas artísticas de expressão que driblavam a cesura a fim de expressar críticas ao regime vigente no país. Dentre essas obras uma chama a atenção quando o assunto é o Positivismo e a Ditadura” é a adaptação musical infantil de Chico Buarque, Nara Leão, Vinicius de Moraes, entre outros, do conto “Os músicos de Bremen”: “Os Saltimbancos”. Nesta peça, há diversas representações de segmentos sociais que, sobre o ponto de vista positivista deveriam se manter em seus devidos lugares, representados pelo Jumento, a Galinha, o Cachorro e a Gata, promovendo a Ordem do local, entretanto, cansados da exploração sofrida, nos é mostrado outro desenrolar de uma história que vai contra os ideais daqueles que estão no poder, os Barões.

Discute-se primeiro, sobre a figura representada pelo Jumento. Em uma visão mais geral, ele representa os trabalhadores da área rural, uma área de labuta pesada sem devido reconhecimento, que ainda no período da Ditadura Militar era composta pela maioria da população brasileira que estava conseguindo formar ligas para manifestação por reformas agrárias e por direitos trabalhistas e sociais, indo contra os latifundiários, no entanto, com o Golpe de 1964, os camponeses sofreram grandes repressões. Sobre um olhar Positivista, os trabalhadores rurais devem manter seus lugares, sujeitos a todo o sofrimento disposto como na canção “O Jumento” de maneira mansa e sem fazer pirraça, a fim de visar o todo, o amor a sociedade. No texto teatral, o Jumento é o primeiro a abdicar deste lugar dada a forma horrível que seu barão o tratava, seguindo estrada para se tornar um músico.


                             "O pão, a farinha, feijão, carne seca                                    
Quem é que carrega? Hi-ho
O pão, a farinha, o feijão, carne seca
Limão, mexerica, mamão, melancia
Quem é que carrega? Hi-ho
O pão, a farinha, feijão, carne seca
Limão, mexerica, mamão, melancia
A areia, o cimento, o tijolo, a pedreira
Quem é que carrega? Hi-ho
Jumento não é
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices
Que coices que dá"



    É apresentado ao público, em sequência, o cachorro. Ele representa, de certo modo, os soldados no período ditatorial brasileiro que estavam a tão somente cumprir ordens, sem questionamentos. Nesta perspectiva, o cachorro narra sua vida com seu barão limitada a seguir regras, o que remete ao positivismo pregado pelos militares, a questão da Ordem que leva a um progresso limitado a manutenção das ordens sociais. O cachorro canta, usando cada vez mais de uma retomada da última silaba da palavra do verso, voltando a ideia de repetição em sua música, ter deixado seu barão em razão dessa exploração das ordens, que diz ter lealdade a farda, se tonando cada vez mais cão.

"Lealdade eterna-na
Não fazer baderna-na
Entrar na caserna-na
O rabo entre as pernas-nas
Volta, cão de raça
Volta, cão de caça
Volta, cão chacal
Sim, senhor
Cão policial
Sempre estou
Às ordens, sim, senhor

Fidelidade
À minha farda
Sempre na guarda
Do seu portão
Fidelidade
À minha fome
Sempre mordomo
E cada vez mais cão"

    Ainda, outro animal representado na peça "Saltimbancos" é a Galinha. Nesse sentido, ela representa os trabalhadores das fabricas que, no período ditatorial já se encontravam em grandes números. Com isso, a história da Galinha se dá em torno de ter que gerar muitos ovos, ter uma grande produção na fazenda para manter seu posto naquele local, assim como os trabalhadores que tinham cotas de trabalho imensas e muitas vezes sem ter seus direitos trabalhistas na prática, efetivados. Para o Positivismo é importante que, novamente, essas pessoas se mantenham nessas condições de trabalho, que exerçam esta função para manutenção da Ordem social, com o Golpe Militar, Associações Sindicais passaram a ser fortemente perseguidas pelo regime. Assim, a Galinha foge do seu barão pois deixara de produzir a quantidade exigida de ovos e por isso seria morta, descartada daquele sistema.

"A escassa produção
Alarma o patrão
As galinhas sérias
Jamais tiram férias
"Estás velha, te perdôo
Tu ficas na granja
Em forma de canja"

Ah !!! é esse o meu troco
Por anos de choco???
Dei-lhe uma bicada
E fugi, chocada

Quero cantar
Na ronda
Na crista
Da onda

Pois um bico a mais
Só faz mais feliz
A grande gaiola
Do meu país"



    Por fim, a gata é apresentada ao público. Nesse sentido, ela representa os artistas da época. De acordo com o ideal positivista cultuado pela Ditadura Militar brasileira, os artistas deveriam manter seu lugar de entreter, em ritmos genéricos e populares, com músicas, obras e peças que não atacassem diretamente ao sistema, ao tanto que foram criadas inúmeras maneiras de censura e perseguição contra os artistas que fossem contra o regime vigente. Com isso, a gata representa àqueles artistas que, contra as orientações de seus “barões”, saem de casa à noite, sob a luz da lua, para se juntar aos outros artistas e promover artes de resistência. Assim, quando a gata tenta voltar para casa ela não é reconhecida e assim é barrada de toda mordomia que era a ela servida, seguindo, desta forma, sua estrada.

"Me diziam, todo momento
Fique em casa, não tome vento
Mas é duro ficar na sua
Quando à luz da lua
Tantos gatos pela rua
Toda a noite vão cantando assim
Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás
De manhã eu voltei pra casa
Fui barrada na portaria
Sem filé e sem almofada
Por causa da cantoria
Mas agora o meu dia-a-dia
É no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata
Numa louca serenata
Que de noite sai cantando assim"


    Depreende-se, portanto, que a peça infantil Saltimbancos fora, na verdade, uma forma de crítica àquele terrível regime de fundas raízes positivistas nas quais grupos sociais devem manter seu lugar em razão da Ordem. Nesse interim, Saltimbancos traz a quebra dessa visão, colocando os animais que representam os homens em seus supostos determinados lugares, colocando-os de maneira a quebrar esse ordem, contrariando a norma de seus barões, fugindo de seus segmentos sociais e enfrentando o ideal positivista de sociedade. Destarte, a obra de Chico Buarque corrobora a percepção de como há na sociedade brasileira, esse ideal de ordem, e como ele estava, mais do que nunca, presente no pensamento positivista da Ditadura Militar intrinsecamente ligado à sociedade, que levou a morte de inúmeras pessoas em nome da manutenção do certo, da ordem. Assim, a peça termina com a mensagem de que a união destes segmentos sociais contra a ordem farão, um dia, a lei da selva mudar.

"Era uma vez (e é ainda)
Certo país (e é ainda)
Onde os animais eram tratados como bestas
São ainda, são ainda
Tinha um barão (tem ainda)
Espertalhão (tem ainda)
Nunca trabalhava, então achava a vida linda
E acha ainda, e acha ainda
Puxa, jumento (só puxava)
Choca, galinha (só chocava)
Rápido, cachorro, guarda a casa, corre e volta
Só corria, só voltava

Mas chega um dia (chega um dia)
Que o bicho chia (bicho chia)
Bota pra quebrar, e eu quero ver quem paga o pato
Pois vai ser um saco de gatos"
BICHARIA

"Esperteza, Paciência
Lealdade, Teimosia
E mais dia menos dia
A lei da selva vai mudar
Todos juntos somos fortes
Somos flecha e somos arco
Todos nós no mesmo barco
Não há nada pra temer
- Ao meu lado há um amigo
Que é preciso proteger
Todos juntos somos fortes
Não há nada pra temer
E no mundo dizem que são tantos
Saltimbancos como somos nós."
TODOS JUNTOS

Larissa Vitória Moreira 

1º semestre de Direito - noturno

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