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domingo, 8 de maio de 2022

relato de 1969

    
     Estou decidida a fazer esse relato mediante a situação degradante na qual nós, artistas, fomos enquadrados por esse (des)governo do general Costa e Silva e seus antecessores militares. Espero incessantemente que essa mera testemunha sirva de algum ensinamento para as gerações futuras - não podemos continuar à mercê desses ideais positivistas por longo tempo.

Para início de entendimento, sou uma produtora de peças teatrais pelas grandes capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, trabalhando a 8 anos nas produções nacionais e obtendo no currículo estreias veneráveis. Porém, por mais que eu tenha orgulho das minhas conquistas profissionais, nesses últimos 4 anos fui obrigada a assistir o sucateamento das artes - em seu sentido mais amplo - no país. O golpe militar instaurou um regime de caça aos questionadores e, assim, apontou as artes como inimiga. 

O questionamento é incabível dentro de um regime de organização militarizada. A defesa da tese e do projeto social positivista “ordem e progresso” tão mencionada por Comté excluem qualquer desarmonia expressa em uma opinião contrária. Compreenda, então, jovem e futuro leitor, que a função primordial da arte - o questionamento social iminente ao homem - a torna evidentemente subversiva aos olhos do regime, sendo todos seus praticantes possíveis criminosos. 

Por isso, caso você pudesse voltar no tempo, encontraria-me aqui, sentada em um quartel junto a demais artistas aguardando a autorização do regime para continuar com meu trabalho - ora, obviamente eles não enxergam a situação dessa ótica, pois trabalho, para eles, é o que perpetua o funcionamento social enquanto a arte é transgressora. Bom, enquanto espero e escuto essa fila de artistas receberem diversos “sim” e “não”, aproveito para contar a você os deméritos atribuídos a minha última grande produção - tempos em que eu não precisava aceitar trabalhos medíocres e alienadores apenas para pensar pela censura sem manchar meu nome.

Chico Buarque, um dos grandes da MPB, contactou-me para auxiliar na produção de seu primeiro musical no final de 1967. Como se sabe, quando alguém de peso te procura, é impossível que se negue ao pedido. O enredo apresentava uma premissa interessante, crítica e ácida, uma tremenda responsabilidade para época - já não era possível negar as constantes ameaças e perseguições que os artistas vêm sofrendo pelo governo militar instituído.  Tratava-se de uma ironia a midiatização do mundo das artes e a influência de padrões americanos impostos no Brasil, além de diversas acusações diluídas ao modo operante dos militares no executivo.

Começamos a produção ao início de 1968 no teatro Ruth Escobar em São Paulo, sendo constantemente ameaçados por aliados do governo que ouviram a respeito das menções negativas aos militares incluídas na peça. Em julho do mesmo ano, fomos surpreendidos pelo CCC - Comando de Caça Comunista - subindo aos palcos e esmurrando todo o elenco do “Roda Viva”. Por mais que tenha saído traumatizada daquela noite, não consigo me esvair da ironia: nós, os imorais causadores da desordem, éramos os pacíficos da situação. Aparentemente o caminho para a ordem e para a ética moral está nos cacetetes, gemidos de dor e roxos pelos corpos.

Com pesar, acabei desistindo da peça por motivos de autopreservação, mas não antes de receber o balde de água fria da liberdade de expressão: o AI 5. Caro leitor, caso esteja confuso a esse ponto, permita-me elucidá-lo: esse ato promulgado por Costa e Silva, a total razão pela qual estou aqui nessa fila, permite ao regime cometer qualquer tipo de aberração aos direitos humanos sobre o preceito de “manter a ordem punindo desordeiros”. Basicamente, é um silenciamento de opositores sob ameaça de tortura. Assim, Roda Viva recebeu um belo selo de censura justificada pelo conteúdo “degradante e subversivo". 

A partir disso, leitor, o convido a pensar comigo sobre a realidade desse momento: um governo militar supressor das artes e da expressão, contrário aos ideais humanistas e às necessidades sociais. Para eles é imoral e degradante ousar dizer a verdade, confrontar as ideias por eles predeterminadas. O projeto positivista enraizado na sociedade, cegamente obedecido pelos cidadãos. Espero veementemente que essa situação seja mudada ao passar dos anos. Por isso escrevo, na expectativa de um melhoramento pelas gerações futuras, pois a minha já está perdida.


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