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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

A EQUIPARAÇÃO DA INJÚRIA RACIAL AO RACISMO

 A ADI 6987 (Ação Direta de Inconstitucionalidade) impetrada pelo Partido Cidadania trata da equiparação da chamada “injúria racial” ao crime de “racismo”. Argumenta o referido Partido que a pretensa diferença ontológica entre injúria racial e racismo, além de não se sustentar a luz de pesquisa empírica, “menoscaba e torna ineficaz o repúdio constitucional ao racismo, por não considerar imprescritível e inafiançável uma das suas principais formas de

manifestação no mundo contemporâneo (...)”. Continuando a argumentação, o Cidadania traz o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de que “ofensa ao indivíduo em sua honra subjetiva por elemento racial constitui uma das principais ferramentas do racismo estrutural (...). Nesse sentido, o entendimento da injúria racial como prática diferente do racismo só contribui ainda mais para a impunidade.

            Os conflitos expressos no litígio são conflitos seculares, advindos de mais de três séculos de escravidão, que opõe setores conservadores, geralmente brancos, remanescentes de uma cultura escravocrata, que atualmente se expressa de forma velada ou quando aberta sob a justificativa da “liberdade de expressão”, e pretos, pardos, vítimas diárias das várias faces que o racismo assume em nosso país.

            Trazendo o conceito de “espaço dos possíveis” do sociólogo Pierre Bourdieu, podemos compreender que a equiparação da chamada injúria racial ao crime de racismo está em pleno acordo com as possibilidades tanto da Constituição Federal quando do Código Penal brasileiro. O Artigo 5º, inciso XLII da Constituição Federal estabelece que “a pratica do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei;”. Já a lei infraconstitucional, no caso o Código Penal, estabelece no caput do Artigo 139 que “difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação” está sujeito a pena de detenção de três meses à um ano e multa. Continua o mesmo artigo, em seu inciso 3º, que “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes á raça, cor, etnia, religião (...)”, a pena consiste em reclusão de um a três anos e multa. Em resumo, considerando a Constituição Federal em conjunto com a lei infraconstitucional de natureza mais específica, no caso o Código Penal, parece perfeitamente plausível e dentro do espaço dos possíveis a equiparação da injúria racial ao crime de racismo.

            Tal equiparação corresponde a uma racionalização da norma, uma vez que tal interpretação argumenta de forma racional que não existem diferenças fundamentais ontológicas e nem fáticas entre uma prática e outra, sendo ambas consideradas expressões diferentes do mesmo fenômeno do racismo. Nesse sentido, a interpretação da norma pode ser considerada sob os conceitos de universalização e neutralização, uma vez que é deduzida de uma operação lógica das normas do ordenamento jurídico e expressa nos termos impessoais dessas mesmas normas. Ainda de acordo com Pierre Bourdieu, podemos considerar a equiparação da injúria racial ao racismo como uma historicização da norma, uma vez que amplos setores da sociedade já não apenas não toleram como repudiam as várias faces que assume o racismo. Nesse sentido, a equiparação de que trata o debate corresponde tão somente ao anseio de seres humanos vítimas de racismo e de uma ampla massa popular que repudia essas práticas.

            Quanto a pretensas alegações de ativismo judicial, entendemos que elas não se sustentam no referido caso, uma vez que o judiciário foi provocado por ente legítimo definido no texto constitucional (partido político com representação parlamentar) e de acordo com a mesma Constituição Federal, cabe ao judiciário a interpretação das normas constitucionais.

            Em relação ao sujeito tutelado, no caso são todas as pessoas diariamente vitimizadas pelas diferentes formas que assume o racismo. Como muitas vezes as autoridades são omissas ao caracterizar certas atitudes como racistas e consequentemente não punem suas práticas de acordo com a lei, como diz Antoine Garapon, o sujeito apartado de toda proteção, recorre ao judiciário como único amparo possível frente aos seus direitos lesados. Essa busca por justiça e o amparo do Direito, longe de constituir uma ameaça a democracia, constitui um aprofundamento da mesma, uma vez que opera para que a igualdade estabelecida no texto da lei se torne cada vez mais efetiva, mesmo que pela via punitiva.

            Aliás, se pessoas, partidos e organizações da sociedade civil mobilizam o Direito em prol dessas pautas, o fazem tão somente em razão de não encontrarem outro amparo para a proteção de seus direitos constitucionais mais básicos. Se a via judicial não muda a consciência das pessoas de imediato e impõe o direito pelo receio da penalidade, isso já constitui um ganho para quem é diariamente vitimizado por práticas racistas. Entretanto, a questão não se encerra na punição, pois quando o Direito se coloca em movimento novos debates são levantados, novos mecanismos de combate ao racismo são pensados e construídos e a longo prazo, inclusive, a consciência social vai se modificando.

            Por fim, trazemos para o debate as reflexões do escritor camaronês Achille Mbembe, que nos traz o conceito de alterocídio, no caso tratar o “outro” como ameaçador, como não semelhante, como aquele que precisa ser apartado e controlado. Nesse sentido, o “outro”, no caso o negro, muitas vezes é desumanizado pelo racismo, desumanização essa que restringe seu espaço social, vedando seu acesso a certos ambientes, universidades, aeroportos, bairros e em casos extremos, porém, não incomuns, esse alterocídio e desumanização levam a agressões físicas e até assassinatos. Nesse contexto e a partir das reflexões de Mbembe, a equiparação da injúria racial ao racismo, não é apenas um desdobramento lógico de nossa legislação, mas um verdadeiro imperativo civilizacional.

Saymon de Oliveira Justo 1º Direito/Noturno


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