Mecânicas de valores fundantes de ordens sociais tornam-se progressivamente mais resilientes com o passar do tempo, posto que são aprimoradas com o desenvolvimento das sociedades que estruturam. Tal conjuntura pode ser exemplificada pelo racismo, o qual, enquanto um notório fator fundante da sociedade brasileira, tem encontrado maneiras de persistir, optando por meios sutis de expressão, tais como a injúria racial. Há de se considerar, em primeira análise, o fato de que os veículos e as vias utilizadas por eles são aspectos distintos e que, portanto, devem ser considerados também isoladamente, mantendo, no entanto e em nome da lógica, a relação de dependência entre os dois aspectos. A partir do Habeas Corpus de número 154.248, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2021, o racismo – ofensa essencialmente dotada de um objeto coletivo – não foi integralmente reduzido à injúria racial; ela apenas foi reconhecida como um dos seus variados meios de manifestação.
Ainda acerca da injúria racial, ela consiste em um atentado à honra de um indivíduo em razão da sua etnia ou cor. Diante disso, infere-se que a causa que dá origem à ofensa é compartilhada por um grupo social em específico e, portanto, é concomitantemente uma violência individual e coletiva. No entanto, tal conclusão não parece satisfazer a maioria, posto que o reconhecimento da injúria racial como racismo engendrou opiniões diversas, sobretudo, devido a um conflito entre o espaço jurídico e o social dos possíveis. O primeiro, ao prever a necessidade de sanção aos crimes cometidos em razão da etnia, buscava reprimir a injúria racial por meio de uma punição. Em contrapartida, o espaço social, impregnado pelas heranças do racismo estrutural, não considerava adequada a proposta anterior, sustentando a tese de que o racismo e a injúria são aspectos distintos e que aproximá-los seria um meio de cometer um equívoco de interpretação e, em ultima instância, uma injustiça. A partir disso, o quadro é agravado, posto que o corpo social apresenta contradições internas, ainda que tenha sido ele (em especial, a sua parcela afetada pela problemática) o responsável pela apresentação da demanda que expressa a necessidade do reconhecimento da injúria racial como racismo.
Perante o exposto, presume-se que a demanda social precedeu a mobilização do Direito em nome de politizá-lo e do reconhecimento do direito fundamental à dignidade humana. Os indivíduos negros são, em geral, os principais mobilizadores do pleito e o são em prol de que seja ainda mais veemente a vedação ao racismo – um crime já tipificado pelo ordenamento brasileiro (mais especificamente, pelo inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988). Portanto, a luta apresenta uma considerável legitimidade, haja vista que, à luz dos postulados de Pierre Bourdieu, promove a racionalização da proibição do racismo e da dignidade humana, traduzindo mais adequadamente a demanda social para o âmbito jurídico, em razão de dois aspectos: (i) torna a garantia da dignidade humana mais palpável para os indivíduos vulneráveis social e historicamente, a partir da universalização; e (ii) neutraliza a aplicação do Direito, de modo a impedir que os seus aplicadores tentem promover o racismo a partir dele. Como efeito primordial, a referida norma é exposta à mecânica da historicização, que é responsável por retirá-la dos limites existenciais do seu contexto de criação e trazê-la para o presente, adaptando-a às demandas atuais dos indivíduos que a pleiteiam. Ademais, é reformado, também, o habitus, isto é, o preconceito racial arraigado nas condutas dos indivíduos, o qual é consubstanciado pelo espaço social dos possíveis.
Considerando o exposto, de acordo com os ensinamentos de Antoine Garapon, equiparar a injúria racial ao racismo não consiste em uma forma de ativismo judicial, pois: (i) consiste em uma solução para uma demanda problemática já existente na sociedade brasileira, a saber, a já referida continuidade sutil do racismo; e (ii) promove, em verdade, o paternalismo judicial, aspecto responsável por garantir que o Direito atue de modo a salvaguardar as pessoas situadas em estado de vulnerabilidade, sendo respeitados os limites judiciais impostos constitucionalmente. Ao ser realizada a referida equiparação, o ordenamento tornou-se inclinado a uma retificação fundamental para tutelar o direito à dignidade (que abrange, também, a não exposição ao racismo) dos indivíduos vulneráveis e, consequentemente, o regime democrático é reiterado, posto que a proteção social prevista por ele é salvaguardada.
A partir disso e da visão de Michael McCann, são simultaneamente condicionadas alterações essenciais no âmbito da mobilização do Direito. A princípio, a partir da penalização da injúria racial como um meio sutil do racismo, são contempladas as demandas atuais protagonizadas por indivíduos racionalizados, trazendo para eles a justiça presente na punição dos crimes dos quais foram objeto e viabilizando, assim, alterações no nível estratégico da mobilização. Para além, com o passar do tempo, as alterações no nível anterior serão responsáveis por reconstruir as bases sociais fundantes responsáveis pela manutenção do racismo, de modo a fazer com que, a partir da reeducação social advinda da devida punição, a prática retirada desse tipo de violência passe a ser tida como indesejável em prol de que, em seguida, se torne inexistente. Como efeito do exposto, é modificado o nível constitutivo do Direito e, com isso, a cultura da sociedade que o sustenta.
O racismo consiste em um estrondoso empecilho social justamente porque, como supracitado, obstrui a dignidade dos grupos histórica e socialmente marginalizados – em especial, os negros. Logo, para os mencionados indivíduos são substanciadas sérias problemáticas, dentre as quais as que foram estudadas e estipuladas pela Razão Negra (um estudo desenvolvido por Achille Mbembe), bem como: (i) a efabulação, enquanto um meio de criação de um imaginário social responsável por inferiorizar e marginalizar os indivíduos negros com o discurso enganoso de que são, por exemplo, preguiçosos ou violentos; (ii) a construção forçada ausência dessas pessoas em espaços de poder e de influência, ratificando a sua marginalização social; (iii) a retirada do caráter humano de todo o grupo social atingido, a partir da já mencionada noção de que ele expressa violência, configurando a noção de desumanização dos indivíduos – uma estratégia deplorável de legitimação de toda estrutura de violência; (iv) o enclausuramento do espírito das pessoas afetadas, o qual é configurado a partir da inviabilização do convívio social entre eles e o restante da sociedade com a justificativa de que, por serem inferiores, devem ser privados do contato com os indivíduos “socialmente superiores”, acentuando a marginalização; e, dentre outros, (v) o alterocídio, um dos efeitos mais envergados que é responsável por construir o negro como o “outro” que, enquanto um “não semelhante”, não merece conviver com a elite. Por conseguinte, no âmbito dos dizeres de Sara Araújo, é consubstanciada a monocultura do saber elitista por meio do reforço diário de que a perspectiva e o estilo de vida dos brancos são os únicos aceitáveis, legitimando, com isso, todo o preconceito e a marginalização engendrados por eles. A linha abissal que foi criada para segregar o sul (a parte obsoleta, dos bárbaros e o destino criado para as pessoas racionalizadas) do norte (o símbolo do desenvolvimento e o lugar de direito dos brancos) é reforçada e, portanto, a ecologia de saberes – ou seja, um meio plural de saberes e de culturas – é ainda mais suprimida.
À luz do exposto, depreende-se que o racismo é uma estrutura preocupante de violência que, em prol de manter a sua existência, tem encontrado, ao longo da História, meios sutis de expressão. O regime democrático não admite uma convivência com tal mecânica, posto que ambos simbolizam fatores mutuamente opostos. A fim de que o Direito possa cumprir com a sua incumbência paternalista confiada pela Democracia, a partir das suas mobilizações pelo grupo vulnerável atingido (as pessoas racializadas, em especial, os negros), ele deve assegurar as alterações no nível estratégico e no constitutivo do espaço jurídico dos possíveis. Quando tal conjuntura é concretizada, a dignidade do referido grupo social é restaurada, posto que a sua ausência e o seu alterocídio – ambos aspectos que foram construídos pelo racismo – são paralisadas e derrubadas, afetando, inclusive, a linha abissal. Por derradeiro, são viabilizadas margens para que possa haver a viabilização da ecologia, isto é, diversidade, de formas de saberes e de justiças sociais e culturais, haja vista que o poder que possibilita que a elite determine os limites do espaço social dos possíveis é progressivamente transferido.
É chegada a hora de o microfone ser passado para quem o tem aguardado com inquietação durante muito tempo. Um novo simpósio está prestes a começar. Que todos recebam e com aplausos os representantes da linha abissal. Os esquecidos e silenciados irão falar.
Mário Augusto Monteiro Filho – Primeiro ano de Direito, turma noturna.
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