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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

ADI 6.987 e a injúria racial como face do racismo estrutural

 

O racismo é crime no Brasil. Mas o que é um crime?

            Para Reale, o delito surge na tridimensionalidade do direito como um fenômeno conflitante com os valores legislativos vigentes, livre do “juridiquês” explico, existe uma norma escrita numa lei, quando se realiza uma ação que é contrária à esta norma, existe um crime.

            Mas para o racismo, qual seria a referida norma?

            A Constituição no art.5°, XLII prevê: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, nota-se que o legislador resolveu por dar atenção “especial” ao crime do racismo, o posicionando na legislação penal como tipo penal imprescritível (sendo o único outro o de atentado contra à Ordem Constitucional), entende-se então que o combate ao racismo é um valor legislativo especial para o ordenamento jurídico brasileiro, ofensas à este valor devem então ser exemplarmente punidas, mas são?

Há um grande entrave na aplicação penal do racismo, este entrave é a “injúria racial”, vejamos, o art.140 do Código Penal tipifica: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro” e então especifica:

Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência;

Pena - reclusão de um a três anos e multa”

            A princípio, a injúria racial e o crime de racismo seriam tipos penais idênticos, já que a constituição antecipa a tipificação penal da prática do racismo “nos termos da lei”. Há, no entanto, uma “pequena” diferença, enquanto a Constituição titula a prática do racismo como imprescritível e inafiançável, o Código Penal trata a injúria como tipo comum, sem este cuidado “especial”, legando à doutrina e à interpretação posterior a própria diferenciação entre “racismo” e ‘injúria racial”.

            Se convencionou então, tratar a “injúria” como ofensa à honra subjetiva, pessoal, e o racismo como ofensa ao coletivo. As práticas racistas são sofridas pelo indivíduo pela sua posição em um grupo. Se à uma pessoa é vedado o acesso à locais públicos ou se lhe é recusada uma vaga de emprego com base discriminatória de sua cor, ela sofre esta discriminação como pessoa, mas apenas porquê é parte de um coletivo. Rosa Parks era obrigada a ceder seu lugar num ônibus à uma pessoa branca por ser uma pessoa preta, ela “deveria” se levantar (e fez bem ao desobedecer) como indivíduo, mas em decorrência de um preconceito destinado à raça a qual pertencia. Para Mbembe este preconceito racial com base na raça que forçava uma pessoa à ceder seu lugar num ônibus, é uma prática de um grupo dominante, que através do preconceito visa “constituir o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se ou destruir”, a lógica racista se encontra então em diminuir o indivíduo com base no grupo ao qual ele pertence.

            Percebe-se então que inexiste esta diferença radical entre o indivíduo e o grupo, o “Ser” para Heidegger é o “Ser-no-mundo”, o “eu” para Ortega se concretiza no “eu sou eu, e minhas circunstâncias”. Não existe então uma “injúria racial” sem que haja “racismo” intrínseco, e se a legislação máxima exige que o racismo seja tratado como inafiançável e imprescritível, é assim que a tal “injúria” deve ser tratada.

            Nesse sentido, o partido Cidadania ajuizou no Supremo Tribunal Federal a ADI 6.987, correlata ao Habeas Corpus 154.248 que, em síntese, buscava o reconhecimento por parte do STF desta inexistência de diferença entre a ofensa coletiva e individual, buscava o Cidadania a equiparação da injúria racial ao crime de racismo.

            E foi bem-sucedido o partido, em 2021 decidiu-se por 8x1 que de fato não havia diferença entre os tipos penais e deveria a injúria racial (por ser apenas face individualizada de um racismo estrutural) ser tratada como imprescritível e inafiançável também.

            Para Araújo, o direito se mostra muitas vezes como “um instrumento de expansão do colonialismo e do capitalismo, sendo responsável pela invisibilização jurídica e pelo silenciamento de sujeitos.” O mesmo sistema jurídico que declarava formalmente a total incompatibilidade do racismo com a sociedade brasileira apresentava uma “alternativa atenuada” para o combate ao preconceito, diversas práticas racistas foram escusadas e atenuadas por manobras jurídicas que as encaixaram como “injúria” para se aproveitar de uma aplicação penal menos rígida, o sistema colocava o racismo como prática que se deve eliminar, mas continha mecanismos que permitiam que a prática saísse impune, mantendo o pensamento racista estrutural herdado dos tempos da escravidão e da colônia.

Ainda nesse sentido, Bourdieu mostra como o direito é uma expressão de um poder simbólico, onde expoentes utilizam-se de seu capital social para impor aos outros sua visão de mundo. Na década de 2010 o IBGE identificava como pretos e pardos 55% da população brasileira, em 2014 apenas 20% dos deputados federais pertenciam à estes grupos, na constituinte de 1988, a bancada negra era ínfima, quando o código penal foi publicado em 1940, era inexistente. Esta sub-representação dos grupos alvos do racismo pode ser entendida como o próprio motivo pelo qual o racismo não é propriamente combatido, aqueles que criam as leis o fazem reforçando suas próprias visões de mundo, não a da maioria da população, pois a segunda é desconhecida para a maioria dos primeiros, o Supremo Tribunal Federal desde sua criação (como Supremo Tribunal de Justiça) em 1828 teve 299 ministros em sua composição, dois quais apenas 3 eram pretos.

            Protegendo então estes grupos sub-representados, estas minorias sociais e políticas, o STF atua como um magistrado “do sujeito”, como aponta Garapon, o judiciário “socorre” os grupos marginalizados atuando para construir um direito inclusivo, o pluralismo jurídico de Sara Araújo, como afirma Barroso: “constitucionalizar uma questão é transformar política em direito”, ao reconhecer a injúria racial como racismo o STF invalida as escusas para se responsabilizar o racismo, novamente em Garapon: é o direito atuando como pacificador das questões sociais, como tutor dos grupos oprimidos e reprimidos. Ao desvincular-se do pensamento colonial de que o racismo é uma “ofensa comum” o STF historiciza a norma (como no pensamento de Bourdieu), traz o direito para o presente e o projeta para o futuro.

            Ao fim é necessário destacar que esta projeção para o futuro e este direcionamento do olhar do judiciário para as questões sociais só é possível graças ao que McCan identifica como a mobilização da sociedade para o Direito, é preciso que grupos, como foi o caso do Cidadania, levem as demandas sociais para o judiciário, para que se concretize este necessário movimento de evolução jurídica, o judiciário precisa ser provocado para que atue de acordo com a cultura cívica do litigantes, só assim se pode criar um Direito “de direitos” não apenas de imposições elitistas de um grupo sobre outro. 

Daniel Godas Galhardo Damian

Turma XXXIX - Matutino

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