O poder
simbólico e o direito
À luz das
análises de Pierre Bourdieu, pode-se vislumbrar o direito como uma forma de
manifestação do poder simbólico, ao se constatar que as limitações que as mais
diversas limitações de interpretação jurídica representam, também, uma forma de
controle social que se dá por meio do chamado poder simbólico. Não se pode
conceber um Direito sem sociedade, ou mesmo uma sociedade sem normatização que
venha a se valer de regras (ou princípios) para controlar/limitar a condutas
dos indivíduos e grupos que lhes integram. Seria possível até afirmar que, para
que exista sociedade, faz-se necessário a existência de Direito, sendo este,
portanto, uma necessidade daquela.
Neste
ponto, torna-se adequada, perfeitamente, a percepção de Bourdieu acerca do poder
simbólico e a noção de que ele pressupõe que os dominados se submetem
espontaneamente ao controle porque possuem alguma crença neste comando. De
fato, como diz Bourdieu, o Direito é o poder simbólico por excelência, pelo
fato de que as normas jurídicas são símbolos que controlam a conduta humana e
que os membros de uma coletividade, seus súditos, a ele se submetem
espontaneamente, cumprindo suas obrigações, seus deveres (e respeitando os
direitos subjetivos alheios), sem questionamentos, sem subversão. A adesão se
baseia na crença, quase mítica (ou religiosa), sobre a natureza do conteúdo da
norma, que é “verdadeira”, ou que “está correta”.
Note-se
que não há um debate com a Lei, pois esta não se apresenta para explicar, mas
para mandar, comandar o seu leitor/destinatário. Se existe algum debate, ele
ocorre durante a aplicação da norma, sobretudo em uma relação processual,
perante o Estado-Juiz, momento em que as partes, (em regra) representadas,
deverão deduzir suas pretensões perante o magistrado, para este apresentar a
interpretação definitiva do fato, perante o direito. Dessa forma, insere-se a
questão acerca das diversas discussões que envolvem a eficácia, a alteração, a
legitimação e a fabricação do direito, bem como suas possíveis interpretações e
os riscos da influência dos chamados de grupos de pressão sobre a sua
existência. Insere-se então a questão relativa à Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 54, por meio de cuja análise e votação pelo STF que
se decidiu a favor da aprovação do abordo de fetos anencéfalos.
Tal
discussão, realizada na mais alta Corte do país, denotou uma vasta complexidade
de visões divergentes emanadas dos mais diversos setores da sociedade, o que
pode ser resumido naqueles conservadores que são contra qualquer tipo de
aborto, baseado em valores puramente de morais e religiosos, e naqueles que
defendem o aborto para certos casos – e até mesmo para todos conforme o desejo
da mulher – com base em argumentos puramente científicos. Desse embate de
demandas sociais, ideias e ideologias que passam a contestar, em termos
puramente técnicos, a lei superar que proíbe o aborto, é que se faz necessária
a presença do Judiciário, como instituição do Estado capaz de regular e
conduzir o direito e, portanto, o próprio ato do poder simbólico, para se valer
de suas capacidades e da interpretação de seus magistrados na resolução desses
conflitos e, consequentemente, na eficácia e observância do direito.
Frederico Henrique Ramos Cardozo Bonfim, Primeiro Ano de Direito Noturno.
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