A modernidade já fora velada. Somos, hoje, fetos dinâmicos da
hipermodernidade tal qual Lipovetsky anuncia e enuncia.
Desde o império do relógio ao tecido das vestes mais famigeradas
há razão. Não uma razão qualquer, mas um espectro onipotente e onipresente ,
vagante em busca da construção do eu ao aquele.
Não há escolha, vivemos, talvez desde Bacon, uma desconstrução
velada dos princípios culturais que nos circunscrevem. A
burocrata-racionalização weberiana cria uma zona de contato latu sensu na qual
o império do status quo burguês solidifica a tese, suprimindo a antítese e estagnando a
possibilidade de síntese.
Antes de discorrermos sobre o enunciado supracitado cabe-nos
definir o conceito de Zonas de Contato norteados pelo definição lúcida de Boaventura. Tais zonas seriam
espaços, sejam eles fisicamente tangíveis ou fluidamente transcendentais, nos
quais ocorrem entrepostos socioculturais que se gladiam. O resultado do combate
analisado de forma otimista culmina num processo dialógico de reorganização das
constelações fragmentadas dos princípios conflitantes. O resultado comum
é o império violento de um dos princípios ou ordenamentos sobre o(s) outro(s).
Retomando a análise conjuntural, diante do imperialismo
capitalista à essência (precedida pela existência e desvirtuada pelos “outros”)
chegamos ao direito como ente colaborador dessa (des)construção.
É na área penal que encontramos os maiores exemplos
dessa sinistra inter-relação. A contemporânea finalidade única da pena é isolar
elementos de contracultura no depósito do cárcere. Punimos aqueles que a
sociedade já condenou a exclusão social por simples manutenção da cultura
vencedora na disputa ocorrida na zona contatual.
Boaventura, ainda a respeito da Zona de Contato define quatro
tipos de sociabilidade: a violência, a coexistência, a reconciliação e a
convivialidade. Dentre elas, destacaremos a de violência e a de
reconciliação.
A primeira consiste em um ponto de embate entre culturas diferentes na qual uma se sobreporá a outra. Possuirá
algum tipo de respaldo e legitimidade. Ao passo que as outras culturas serão
submetidas, marginalizadas e até excluídas por essa dominante. E é exatamente nessa conjuntura que
nos encontramos desde a Revolução Industrial. A supracitada razão
presente no império do relógio, pérfida aos clamores da poesia de Mário
Quintana¹, se fez essencial para que a cultura burguesa, na mais perfeita
metáfora do processo de fagocitose na Biologia, se tornasse consistente o suficiente
para “englobar” e “digerir” outras culturas. As intervenções insistentes da
contracultura, materializada, por exemplo, nos “versos” de “beba coca cola”
(1957)² e na imagem de “lixo-luxo”³ da poesia concreta, não foram capazes de
efetivamente conter os grandes símbolos da cultura burguesa: um dos dias mais
naturais em nosso cotidiano é aquele em que vamos a um shopping conjugado a um
hipermercado famoso mundialmente, compramos vários artigos – pelo menos um
jeans - “batizados” com os nomes das grandes marcas – produzidas, claro,
por multinacionais, uma vez que as nacionais não resistiram à concorrência e
sucumbiram - nem sempre por necessidade, e, felizes, nos dirigimos ao fast-food
mais próximo para saborearmos a última iguaria propagada pela Internet do smartphone, acompanhada, é claro, de uma Coca-cola
tamanho grande. Enquanto comemos, acompanhamos, em primeira mão, após a
retirada de capital do país X, o aprofundamento de sua crise, o que também
influenciou na cotação do dólar.
Ademais, enfatizando exemplos menos genéricos desse tipo de sociabilidade,temos a partilha da África com a
consequente formação de fronteiras artificiais. Ou seja, a corrida europeia por colônias
foi pautada numa espécie de agrupamento de diversas tribos e etnias diferentes
afim de enfraquecê-las e facilitar sua dominação. Nesse mesmo caminho da partilha
africana, podemos destacar o que a Bélgica fez em sua parte fomentando a
disputa entre tutsis e hutus na Ruanda. Os belgas apoiavam os tutsis no poder,
dando-lhes legitimidade para o domínio dos hutus.
Uma outra espécie de sociabilidade violenta pode ser exemplificada pelo caso dos índios
Guarani-Kaiowá que entram em conflito com posseiros e latifundiários para
defender a sua “terra ancestral”. São condenados ao esquecimento pelas
autoridades brasileiras e seus direitos estão sendo totalmente desrespeitados pela negligência estatal que legitima o domínio desses posseiros.
A escola sociológica da Subcultura delinquente também se enquadra
nessa zona de contato, pois basicamente ocorre quando os jovens de periferias
que crescem com determinados costumes e valores são mandados para escolas onde
prevalecem os valores da classe média que conflitam com os seus. Isto é, de uma
hora para a outra o que era certo, agora é proibido e assim por
diante.
O segundo tipo de sociabilidade abordado - o de reconciliação - terá como mote a justiça restauradora.
Defenderá o reconhecimento e a posterior pseudorestauração dos erros passados. Não visa a promoção de mudanças profundas, ou seja, a
ordem (status quo) continua a mesma. O poder adquire “novas capas”. Os Donos do
Poder mantêm a designição e as
classes desfavorecidas permeam-se por um processo de eufemização do déficit conjuntural
provido pelo Estado Democrático de Direito.
A melhor maneira de sanar antigas ofensas e agravos obviamente não
é aquela que de certa forma é imposta, fazendo com que as partes sejam
obrigadas a conviver em “harmonia” um tanto quanto forçada. É dessa forma que
se dá o processo de cotas no Brasil, dando-se enfoque no sistema recém aprovado
de cotas para vagas em universidades públicas. A grande historicidade de
preconceito racial é algo que perdura desde o tempo da escravidão até os dias
de hoje, e embora haja negação, de que o preconceito não existe e não se
perpetua, é bem claro que se mantém de forma bem intensa no imaginário das
pessoas.
Agora com a possível entrada efetiva de negros nas Universidades
não há mais como brancos e negros não entrarem em contato, eles estarão vivendo
em um mesmo ambiente, compartilharão um mesmo vínculo social. Entra aí a ideia de reconciliação: o
governo cria uma forma de justiça restauradora para sanar as desigualdades e
preconceitos de muito tempo, entretanto isso não quer dizer que a partir de
então o preconceito deixará de existir e que os negros deixarão de sentir-se oprimidos, deixarão de sofrer. Há,
portanto, uma reprodução do preconceito sob
uma nova forma, afinal a relação entre negros e brancos se dará sob uma lei,
sob a imposição de um direito, sem que surgisse de uma forma natural, através
da solidariedade, da compreensão.
Sem mais delongas, o tempo e a tipologia
textual nos imputa à concluir. A pluralidade de constatações abordadas ao longo
do texto, assim como a fotografia de Salgado, causam um monocromático
desconforto. Poderia, como o leitor possivelmente anseia, sugerir medidas
concretas para solução emediata dessas desventuras,mas não as vejo e me
comprometo com a veracidade do que redijo. O caráter emancipatório do direito,
assim como a almejada síntese nas zonas de contato dependem mais de uma
reformulação socio-conjuntural coletiva do que de medidas isoladas e por
conseguinte paleativas. Proponho a problematização individual de viés altruísta na
concretização conjunta de forma que essa vá de encontro ao todo coletivo. Oras,
seria pedir muito?
_____________
¹ Algumas poesias do modernista Mário Quintana (1906-1994) tratavam sobre a fugacidade do tempo, fato exemplificado em sua conhecida frase “O tempo é um ponto de vista dos relógios”.
² PIGNATARI, Décio. Beba
coca cola.
Disponível em:
Disponível em:
Acesso: 25/11/2012
"Beba coca
cola" é um poema pertencente ao movimento da Poesia Concreta, no qual a
imagem do poema também é carregada de significado.
³ CAMPOS, Augusto.
Disponível em:
http://nossabrasilidade.com.br/wp-content/uploads/2012/02/luxolixo.jpg
Acesso em: 25/11/2012
É um poema também pertencente ao movimento da Poesia Concreta.
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TEMA: Direito nas Zonas de Contato: violência/reconciliação
GRUPO (noturno):
Carolina Meneghello
Jéssica Thaís de Lima
Júlia Godoi Rodrigues
Pedro Henrique Valdevite Agostinho
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