Toda vida em sociedade tem seus problemas. Nunca na história houve um agrupamento humano em que a totalidade de seus elementos estivesse satisfeita. Incomodados, os homens passam a avaliar como deveria ser a sociedade,contestam suas falhas. Alguns, mais revoltados, dizem que o sistema vigente é insustentável. Com todos esses nervos à flor da pele, passam a formar certas ideologias e a elas se tornam dependentes. Criam um mundo novo, um “País das Maravilhas”, e, como Alice, deslumbram uma realidade que não passa de um sonho à sombra de uma árvore. Durkheim, em sua obra As Regras do Método Sociológico, trata desse assunto logo no capítulo inicial. Nele, explica que a sociologia é a ciência responsável por analisar os “fatos sociais”, não se prendendo ao “como” deveria ser a sociedade. “A reflexão é, assim, incitada a afastar-se do que é o objeto mesmo da ciência, a saber, o presente e o passado, para lançar-se num único salto em direção ao futuro.” (Émile Durkheim).
Mas por que seria a ideologia tão prejudicial? Não consigo não pensar na música “Ideologia”, da extinta banda Barão Vermelho, para responder esta pergunta. Ela diz: “Meus heróis morreram de overdose, /meus inimigos estão no poder”. Neste trecho, quando Cazuza cantava “overdose”, não se tratava de entorpecentes, nem mesmo remédios, mas de uma overdose mental. Seus heróis, que pregaram com tanta força idéias revolucionárias, perderam-se na irrealidade, na fantasia. Ao fim, seus inimigos continuavam no poder, e até hoje, anos depois, continuam. Os primeiros versos da canção confirmam a análise agora feita: “E as ilusões /estão todas perdidas./ Os meus sonhos/ foram todos vendidos.” A ideologia é como óculos de lentes divergentes. Através deles, podemos ver objetos distantes com mais clareza, mas deixam embassado tudo que está a nossa volta. A ideologia é capaz de nos alienar. Nela, tudo é belo, tudo é harmônico. Ela se opõem a todas as falhas, tudo que é feio e odioso na sociedade. Sua teoria faz nossos sangues ferverem e nossas vozes clamarem por justiça...mas nada é real.
Durkheim explica que as ideias não podem anteceder os fatos concretos, e sim o inverso. São os fatos concretos que nos embasam para a formulação de teorias. Durkheim é empirísta. Seu conceito é tão radical que chega a considerar Augusto Comte um tanto quanto metafísico. Ele diz que o “fato social” deve ser visto estudado como uma coisa, da mesma forma que as ciências naturais avaliam seus objetos de estudo: “O que existe, a única coisa que realmente é oferecida à observação, são as sociedades particulares que nascem, se desenvolvem, morrem, independentemente umas das outras”(Émile Durkheim). Citando Bacon, a ideologia é um tipo de preconceito (ídolo) que não pode ser trazido para o estudo da sociedade. Os valores, os pensamentos do cientista social não podem violar o experimento.
A grande pergunta é: Será que isso é possível? Será que somos capazes de julgar a sociedade sem lançar mão de nossos conhecimentos pré-existentes? Será que somos capazes de elaborar leis baseadas apenas na realidade, nas relações entre os indivíduos, não passando tudo antes pelo rigoroso crivo de nossa consciência? O nosso “bom-senso” pode ser silenciado? Como pode um elemento, que foi criado sob (de acordo com Durkheim) as pressões exercidas pela coletividade, foi forçado a acatar hábitos que não lhe eram naturais, forjado a partir dos interesses alheios, “arrastado por todos”, exercer juízo sobre essa mesma coletividade? Como poderia uma cadeira contestar seu marceneiro; um candelabro avaliar o trabalho de seu próprio ferreiro? É uma só pergunta, que pode ser feita e pensada de diversas formas, sem nunca alcançar uma resposta objetiva.
Durkheim diz que sim, é possível o cientista social se separar do meio em que está inicialmente inserido e o definir. Entendo que sobre este assunto, jamais haverá consenso. Jamais desaparecerão as bandeiras e gritos de justiça, nem as reprovações de conservadores. Eu creio que sim, é possível a produção de estudos sociais neutros, a publicação de leis baseadas na análise e não em conceitos deturpados. Foi assim que surgiu o “Penso, logo existo” de Descartes. Como disse Bacon, alcançaremos tal objetivo através da análise fria, sem nos deixarmos levar pela retórica. Não é errado possuir convicções e valores, mas estes devem provir da realidade, e não de devaneios. Seria a ideologia forte o suficiente para resistir à prova do mundo concreto?
A ideologia é viciante. Ela pede a cada dia doses maiores, até nos aprisionar de maneira irreversível. Pode ser que seus heróis estejam morrendo de overdose e você nem saiba. Ela nos aliena. Talvez enquanto você gasta seu tempo correndo atrás de ilusões, seus inimigos continuem no poder. Você ainda quer uma para viver?
Este é um espaço para as discussões da disciplina de Sociologia Geral e Jurídica do curso de Direito da UNESP/Franca. É um espaço dedicado à iniciação à "ciência da sociedade". Os textos e visões de mundo aqui presentes não representam a opinião do professor da disciplina e coordenador do blog. Refletem, com efeito, a diversidade de opiniões que devem caracterizar o "fazer científico" e a Universidade. (Coordenação: Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa)
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sábado, 7 de maio de 2011
Pra viver?
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