Desde a concepção do
jusnaturalismo, passando pelo positivismo, e as demais filosofias do pensamento
jurídico, sempre existiu a preocupação de definir as bases de um Direito justo,
a fim de alcançar o máximo bem estar de uma comunidade. Segundo o pensamento de
Pierre Bourdieu, tal estado pode ser atingido a partir da renegação de
fundamentos como o instrumentalismo e o formalismo pela jurisprudência. O
sociólogo argumenta que o Direito como ciência não pode estar a serviço de uma
classe dominante, assim como critica a análise de Hans Kelsen, estabelecendo
que as ações jurídicas possuem sim influência das pressões sociais. Dessa
forma, Bourdieu entende que o Direito engendra dois pontos de vista opostos: a
“lógica positiva da ciência” e a “lógica normativa da moral”.
Como exemplo dessa necessidade simultânea de
lógica e ética no âmbito jurídico, é pertinente a discussão do julgamento sobre
a ADPF 54. A ação, relatada pelo
ministro Marco Aurélio Mello em 2004, foi julgada apenas 8 anos depois e
decidiu que não deve ser considerado como aborto a interrupção terapêutica
induzida da gravidez de um feto anencéfalo. Alvo de grande controvérsia e ampla
cobertura midiática, o projeto gerou protestos e críticas por parte
considerável da população, de maioria religiosa, mas foi aclamada por médicos e
feministas, que defendiam o direito de escolha da gestante.
Consoante às ideias expostas por Luís
Roberto Barroso em seu voto, a interrupção da gestação no caso de feto
anencefálico não deve ser criminalizada, pois não constitui um aborto de fato
segundo a própria legislação do país. O código penal brasileiro, no caso de
aborto, pressupõe a existência de vida fora do útero, portanto, como, em 100%
dos casos, o feto anencefálico não terá vida extra-uterina, tal situação não
consistiria em um crime. Outrossim, o direito local não possui uma definição de
quando começa a vida, mas possui uma definição de quando ocorre a morte: a
paralisação da atividade cerebral. Assim, partindo do pressuposto de que o
cérebro de fetos anencefálicos sequer começa a funcionar, a equiparação dessas
situações com verdadeiros casos de aborto seria absurda. Além disso, o ministro
argumenta que, ainda que se considerasse aborto, os artigos do código penal não
incidiriam por força do principio da dignidade humana, que está no centro dos
sistemas jurídicos constitucionais.
A partir dos citados argumentos de Barroso,
ficam claras as noções de direito formuladas por Bourdieu. Analogamente ao
pensamento do pensador francês, o ministro do STF associa a lógica científica
(determinação médica de que 100% dos casos de anencefalia resultarão em morte)
com a lógica moral (dignidade da pessoa humana), determinando que, para fetos
anencefálicos, não há vida no sentido técnico ou jurídico. Dessarte, conclui-se
que o caso da ADPF 54 mostrou a importância de magistrados como Luís Roberto
Barroso, que, nas palavras do próprio sociólogo, “introduzem as mudanças e as
inovações indispensáveis à sobrevivência do sistema que os teóricos deverão
integrar ao sistema”.
João Manuel Pereira Eça Neves Da Fontoura - Turma XXXV Noturno
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