Total de visualizações de página (desde out/2009)

terça-feira, 19 de junho de 2018

Lógica científica e moral

   Desde a concepção do jusnaturalismo, passando pelo positivismo, e as demais filosofias do pensamento jurídico, sempre existiu a preocupação de definir as bases de um Direito justo, a fim de alcançar o máximo bem estar de uma comunidade. Segundo o pensamento de Pierre Bourdieu, tal estado pode ser atingido a partir da renegação de fundamentos como o instrumentalismo e o formalismo pela jurisprudência. O sociólogo argumenta que o Direito como ciência não pode estar a serviço de uma classe dominante, assim como critica a análise de Hans Kelsen, estabelecendo que as ações jurídicas possuem sim influência das pressões sociais. Dessa forma, Bourdieu entende que o Direito engendra dois pontos de vista opostos: a “lógica positiva da ciência” e a “lógica normativa da moral”.
   Como exemplo dessa necessidade simultânea de lógica e ética no âmbito jurídico, é pertinente a discussão do julgamento sobre a ADPF 54.  A ação, relatada pelo ministro Marco Aurélio Mello em 2004, foi julgada apenas 8 anos depois e decidiu que não deve ser considerado como aborto a interrupção terapêutica induzida da gravidez de um feto anencéfalo. Alvo de grande controvérsia e ampla cobertura midiática, o projeto gerou protestos e críticas por parte considerável da população, de maioria religiosa, mas foi aclamada por médicos e feministas, que defendiam o direito de escolha da gestante.
    Consoante às ideias expostas por Luís Roberto Barroso em seu voto, a interrupção da gestação no caso de feto anencefálico não deve ser criminalizada, pois não constitui um aborto de fato segundo a própria legislação do país. O código penal brasileiro, no caso de aborto, pressupõe a existência de vida fora do útero, portanto, como, em 100% dos casos, o feto anencefálico não terá vida extra-uterina, tal situação não consistiria em um crime. Outrossim, o direito local não possui uma definição de quando começa a vida, mas possui uma definição de quando ocorre a morte: a paralisação da atividade cerebral. Assim, partindo do pressuposto de que o cérebro de fetos anencefálicos sequer começa a funcionar, a equiparação dessas situações com verdadeiros casos de aborto seria absurda. Além disso, o ministro argumenta que, ainda que se considerasse aborto, os artigos do código penal não incidiriam por força do principio da dignidade humana, que está no centro dos sistemas jurídicos constitucionais.
    A partir dos citados argumentos de Barroso, ficam claras as noções de direito formuladas por Bourdieu. Analogamente ao pensamento do pensador francês, o ministro do STF associa a lógica científica (determinação médica de que 100% dos casos de anencefalia resultarão em morte) com a lógica moral (dignidade da pessoa humana), determinando que, para fetos anencefálicos, não há vida no sentido técnico ou jurídico. Dessarte, conclui-se que o caso da ADPF 54 mostrou a importância de magistrados como Luís Roberto Barroso, que, nas palavras do próprio sociólogo, “introduzem as mudanças e as inovações indispensáveis à sobrevivência do sistema que os teóricos deverão integrar ao sistema”.

João Manuel Pereira Eça Neves Da Fontoura - Turma XXXV Noturno

Nenhum comentário:

Postar um comentário