Ensina-se
que o casamento é algo natural à vida humana civilizada, que a especulação capitalista
é o que move o mundo e se regula, não há motivos para preocupação, que o
patriarcalismo é quem cuida para que a sociedade não caia na imoralidade e na
anarquia. Isso, segundo Pierre Bourdieu acontece devido à existência de uma
violência simbólica exercida sobre as camadas populares, um poder que se encontra oculto, dissimulado, que
persuade os entes da comunidade de forma a garantir a dominação, que, apesar de
não palpável, exerce um poder simbólico, podendo se engendrar em verdadeiras
ideologias quando tomados como coletivos. Daí há a abstração da importância de
uma produção jurídica que não se prenda na ideia de um Direito como instrumento
de uma classe dominante, assim como é necessário fugir da ideia deste como autônomo
perante as pressões sociais. O Direito para Bourdieu é fruto de uma lógica
duplamente determinada entre as relações de força próprias a ele que lhe conferem sua estrutura, ou seja, os conflitos que nele tem espaço e a produção
doutrinária jurídica que delimita o espaço dos possíveis. Isto é, no campo
jurídico estão em jogo lutas, uma vez que a hermenêutica é uma maneira de
apropriação dessa força simbólica, bem como os conflitos próprios do Direito.
Um fato que ilustra muito bem essa
situação é a decisão proferida pelo Ministro Barroso em relação à ADPF 54
permitindo a interrupção da gravidez em caso de gestação de anencéfalos. Essa
decisão representa muito mais que um direito comum para as mulheres, representa
o Direito como uma ferramenta que pode garantir a emancipação feminina em uma
sociedade patriarcalista, um pequeno passo em meio a uma maratona para a
conquista da igualdade de gênero. Representa um contragolpe ao feminicídio, uma
vez que diminui, ou tem a pretensão de, o estigma relacionado ao aborto e da
mulher que o pratica, pois as condições que levam uma mulher a tal prática, por
vezes, são reflexos do descaso feito com a população feminina, bem como as consequências
deste são degradantes para a mulher, que se motivo de exclusão por parte dos
diversos segmentos da sociedade e tem seu psicológico abalado. Pela óptica de
Bourdieu, esse quadro é um exemplo de historicização da norma, em que se passa
do plano fático para o formal, adapta as fontes às novas circunstâncias, encontrando nelas possibilidades inéditas a serem exploradas.
Porém, como posto anteriormente, toda
produção jurídica é resultado de uma dinâmica dupla, assim, tem-se em trânsito,
no legislativo, um Projeto de Emenda Constitucional que visa criminalizar o
aborto em casos de estupro. Um imenso retrocesso protagonizado pelo patriarcalismo,
notoriamente detentor de poder simbólico fortemente exercido na sociedade. Quadros
como esse são novamente esclarecidos pelo pensador quando este diz que a afinidade
dos interesses e as formações semelhantes favorecem a formação de uma visão
alinhada de mundo, ou seja, diminui a probabilidade do desfavorecimento da
ideologia dominante, isto é, o atual senário do poder legislativo brasileiro se
mostra notoriamente alinhado à cultura patriarcalista conservadora, favorecendo
sua propagação e maior enraizamento no Direito e cultura nacional. Daqui
retiramos a definição de habitus para o francês, disposições incorporadas pelo
indivíduo durante sua formação, atrelado ao seu campo, e as decisões proferidas
pelo indivíduo estão, portanto, atrelados ao habitus. Na decisão referente à
ADPF 54, por exemplo, ficou claro que até mesmo os ministros mais conservadores
deixaram transparecer o habitus produzido a partir de uma perspectiva jurídica.
Por fim, há uma constante e imensa luta
sendo travada no cenário jurídico nacional, notadamente travada entre a construção de um Direito baseado na crença de sua autonomia e a necessidade de adapta-lo a situações concretas. Os elementos que moldam o direito são claros e devem ser levados em conta no campo jurídico. O veredicto, o produto da luta simbólica travada no campo jurídico,
deve corresponder a emancipação, emancipação contra aquelas forças que, dissimuladamente, embaçam a visão da comunidade em relação à sua situação sócio-jurídica, porém distante de formalismos e instrumentalismos.
Felipe
Cardoso Scandiuzzi - 1ª ano - Direito Matutino
Nenhum comentário:
Postar um comentário