A
partir do pós- guerra tornou-se comum nos países ocidentais o fenômeno da
judicialização, isto é, questões de larga repercussão política e social estão
sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário e não pelas instâncias
tradicionais: executivo e legislativo. Um exemplo deste fenômeno no contexto
brasileiro é a aprovação, em 2011,
da ADPF 132 e da ADI 4277 pelo STF. Observando que a Constituição tem por
finalidade proteger os direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal
reconheceu a união homoafetiva estável como entidade familiar. Tal deliberação amplia,
pois, a compreensão do conceito de família- em respeito a pluralidade
democrática e a dignidade da pessoa humana- e expande aos cônjuges homoafetivos
direitos que há décadas são exclusivos às uniões heteroafetivas, como herança
por morte do parceiro, pensão alimentícia e comunhão parcial de bens. É bastante
provável que se fossemos esperar este avanço vir das esferas legislativas e
executivas, ainda vigoraria a concepção restrita, equivocada, reacionária e
preconceituosa de família e milhares de homossexuais estariam ainda mais à
margem do âmbito jurídico e social.
Se, por um lado, esse fenômeno da judicialização traz avanços, respostas a algumas das
demandas das minorias. Por outro, evidência a urgência da reforma política,
pois se o judiciário está sendo mais acionado do que se poderia imaginar significa
que há uma disfuncionalidade política, uma morosidade dos demais poderes,
causadas- de acordo com Barroso (p. 9)- por ‘’ uma persistente crise de
representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo’’. Essa retração do poder legislativo leva também
ao ‘’ativismo judicial’’, caracterizado pela a escolha de
um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu
sentido e alcance. A idéia de ativismo judicial está associada, portanto, a uma
participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e
fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros
dois Poderes.
De acordo com a visão de alguns aplicadores do Direito, na decisão pela união homoafetiva estável como
instituto jurídico, o STF usou do ativismo judicial no sentido pejorativo do
termo, quando deveria ter agido pela auto-contenção judicial, ou seja, não ter invadido
às competências legislativas proferindo decisões que não estão explícitas nos
textos da lei. Concordar com tal concepção, todavia, é ter uma visão distorcida
do papel do jurista e da realidade dos homossexuais na sociedade brasileira. Diante
das lacunas da lei e da urgência do caso concreto o juiz deve buscar a solução
que seja mais correta, mais justa, à luz da observância dos direitos
fundamentais, ainda que para tal ele tenha que agir de maneira contramajoritária.
Ora,
foi exatamente o que fez o STF ao aprovar a ADPF 132 e da ADI 4277. Não se trata do ato de legislar, a
judicialização, neste caso, são decorrentes do nosso modelo constitucional
abrangente e não de um exercício deliberado de
vontade política. Ademais, a
extensão da concepção de família e o reconhecimento da união homoafetiva
estavam implícitos na constituição, foram retirados de valores fundamentais
como: a igualdade perante a lei, a liberdade de expressão, o combate ao preconceito,
a dignidade da pessoa humana e o pluralismo democrático. O STF tornou ser o
dever ser, deu materialidade ao plano formal ao interpretar e ampliar o texto
constitucional a fim de atender uma demanda social urgente e implícita na Magna
Carta. O Direito foi nesse caso e considerando as ideias do Boaventura de Sousa
Santos, um instrumento emancipatório, uma vez que incluiu- ainda que de forma
tímida- uma parcela social que há séculos é violentada e marginalizada pela
discriminação, pela distorção dos princípios religiosos e pelo ódio as diferenças.
Não se trata de desconsiderar que o ativismo judicial no seu sentido
amplo, de interferência as demais esferas, deve ser controlado e eventual, já que em doses excessivas há o risco de se afligir a já frágil democracia brasileira. E sim de ressaltar que há circunstâncias em que a ideia de ativismo judicial é aplicada de forma equivocada, como fizeram alguns aplicadores do direito ao
julgar a decisão do STF pela extensão dos direitos aos casais homossexuais. No caso da união homoafetiva apenas aparentemente há a opção pela auto- contenção judicial e outra
possibilidade de decisão. Caso o STF negasse o direito estaria agindo respaldado
pela paixão, pela influência de uma maioria homofóbica e não pela razão, pela
observância de cláusulas pétreas e de princípios básicos da democracia. A
aprovação da ADPF 132 e da ADI 4277 é um pequeno passo para a construção de uma
sociedade que aprecie e respeite a pluralidade, onde pessoas não sejam impedidas de amar e demostrar seus sentimentos e onde histórias, como a de Saul e Raul narrada por Caio Fernando, não deixem de florescer por medo da repressão social.
‘’Num deserto de almas também desertas, uma alma
especial reconhece de imediato a outra (..)
Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece, porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las(...) Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos’’
Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece, porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las(...) Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos’’
Caio Fernando Abreu, aqueles dois.
Conto completo: http://contobrasileiro.com.br/aqueles-dois-historia-de-aparente-mediocridade-e-repressao-conto-de-caio-fernando-abreu/
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Juliana Inácio- Direito noturno
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