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domingo, 6 de dezembro de 2015

A anencefalia e o aborto

          No Código Penal de 1940 não havia tecnologia para o caso da anencefalia, portanto costumava ser a gestante quem decidia se realizaria ou não o aborto. O ministro Luís Roberto Barroso, afirma que a anencefalia é uma má formação congênita que gera como consequência fetos sem cérebro. É, portanto, uma condição incompatível com a vida extrauterina. Todas as entidades médicas e científicas que compareceram a audiência convocada pelo ministro marco Aurélio, confirmaram que o diagnóstico é 100% certo, a letalidade ocorre em 100% dos casos.
          O aborto não é punido em dois casos: quando não tem jeito de salvar a mãe ou quando a gravidez é corrente de estupro. Os juristas e juízes dispõem, em graus diferentes, do poder de explorar a polissemia das fórmulas jurídicas recorrendo à restrictio (processo para não aplicar a lei) ou à extensio (processo que permite a aplicação de uma lei que não deveria ser tomada à letra). Por fim, o conteúdo prático da lei se revela no resultado da luta simbólica, relação de força, entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais. O trabalho da racionalização confere a eficácia simbólica exercida por toda ação quando reconhecida como legítima. A instrumentalização descreve que o direito não pode servir de instrumento para classe dominante conservadora.
          Bourdieu trata da relevância da divisão do trabalho jurídico enquanto atividade de interpretação filosófica e literária do jurista. No caso, fica evidente a atividade hermenêutica realizada pelos ministros, que expandiram a efetividade e o alcance da norma. Ao mesmo tempo, os juristas se atentaram para a definição civil, jurídica sobre a vida- a lei não determina quando ela começa, mas quando termina. Podemos perceber que a atuação dos ministros se deu dentro do "espaço dos possíveis". Tal ADPF, além de envolver o campo jurídico, envolve o campo da ciência e dos dogmas.
            A permanência do feto anômalo no útero da mãe se mostra potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e ávida da gestante. Considerando também o princípio da dignidade da pessoa humana, não se deve impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde. Sendo assim, não deve competir ao Estado a decisão da realização do aborto.
          Bourdieu também afirma que a sociedade está permeada por conflitos constantes em busca de poder e que para garantir a manutenção do poder, seus detentores buscariam camuflar seus interesses de forma que aparentassem ser reflexo dos anseios da sociedade como um todo, através da violência simbólica. A figuração desses interesses como coletivos serve de justificativa para construções ideológicas.
          É neste sentido que entra a pretensão de enquadrar o aborto de anencéfalos como crime previsto no código penal, exemplificando violência simbólica, visto que os detentores do poder utilizavam de preceitos religiosos para construir um consenso sobre a realidade, ignorando a laicidade do Estado.
          Existem conflitos constantes entre os diversos campos existentes na sociedade, que acabam levando diversos destes campos a disputar a força dentro do espaço social. É neste momento que o campo jurídico ingressa como agente definidor e regulador desses confrontos, sendo marcado pelos outros como o "porta-voz" da razão, da neutralidade e da universalidade. Isso fica visível no julgado, em que o judiciário entrou como agente regulador dos conflitos entre o campo religioso e campo cientifico.
          A grande questão da arguição é quando a vida surge. A constituição não prevê o surgimento da vida, apenas o encerramento dela (com a morte encefálica). Sob essa perspectiva, os ministros que votaram contra a sanção da tipicidade de aborto, se apoiaram em preceitos científicos de quando começa a vida. No entanto, a maioria absoluta dos ministros sustentaram seus argumentos também em fatos científicos– a vida de um recém-nascido anencéfalo dura minutos – e em bases constitucionais – aborto de anencéfalo não se enquadra nos artigos de direito penal, pois não chegam a constituir aborto, uma vez que a prática de aborto pressupõe uma potencialidade de vida (que o feto anencéfalo não possui).  Portanto, é legitima a decisão do Judiciário, pois as sustentações envolveram a presença de vários campos como o assunto exigia, além de fundamentar-se na Constituição, apesar de haver uma sobreposição de princípios. Assim, mesmo com conflitos éticos-morais de grupos, a decisão não pode ser colocada a prova quanto sua legitimidade, pelo fato que atendeu os valores democráticos.
          Para o debate do aborto são utilizados diversos campos como o das ciências médicas e biológicas, bem como questões morais, religiosas, éticas e históricas, que influenciam e se interligam ao campo jurídico, demonstrando como a teoria Kelseniana se equivoca ao dizer que o Direito é completamente independente dos constrangimentos e das pressões sociais.  Ele possui, como afirma Bourdieu, uma autonomia sim, mas esta é relativa como demonstra o caso. Contudo, é esta relatividade que permite que ele possua elementos próprios, e em especial no caso da ADPF 54, decida sobre a questão de que se existe vida ou não para um feto anencéfalo, ultrapassando ate mesmo a medicina.


Julia Helena Tury Blumer – 1º ano Direito Noturno

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