Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54/DF), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde formalizou um pedido no qual demonstra ser improcedente a criminalização por via de ação penal pública de profissionais da saúde que atuem em procedimento de interrupção da gravidez de feto anencefálico, contestando o enquadramento nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, que criminalizam a ação de provocar o aborto em si ou consentir que outrem lhe provoque. Após o julgamento, o STF optou por deferir o pedido.
À luz de Pierre Bourdieu, tenta-se compreender esse fenômeno social. Observa-se que se trata de um conflito jurídico, o qual se relaciona com o conceito de Luta Simbólica do sociólogo citado. Segundo ele, há um embate entre doutrinadores e operadores do direito. Os primeiros se dedicam à elaboração teórica e universal da norma. Já os segundos se deparam com a aplicação ao caso prático. Ambos contribuem para a construção do direito, influenciando suas fontes. Mas o que destaca nesse caso prático é a confusão dessas duas funções. Por conta do fenômeno da judicialização, discutida com muita propriedade por Barroso, a não manifestação do Legislativo em determinado anseio social, propicia o avanço do judiciário, ainda que isso implique em operadores agirem como doutrinadores, pois, nesse caso em particular, o que os ministros do STF fizeram foi muito além de adequar a norma à realidade, e sim criar norma.
Há de se considerar o que Bourdieu chama de Eficácia Simbólica. Esta se dá pelo formalismo racional, e até ritualístico que envolve os procedimentos judiciais, de modo a legitimar a sentença como expressão da razão, e não dos ministros. Ocorre que, na verdade, a visão de mundo que possuem as autoridades constituídas influencia em demasia sua decisão. Aliado a isso, deve-se levar em conta o Caráter Simbólico que, segundo Pierre, explica a submissão da população aos magistrados, uma vez que são considerados capazes de determinar o que é justo, e que evidencia a existência de uma hierarquização na sociedade.
Ao término desta breve reflexão, busca-se relacionar a necessidade de fundamentação na realidade que os enunciados jurídicos precisam para obter êxito. Por menor que seja o grau de concordância que a sociedade possua com o novo direito criado, ele precisa ser aceito para ser vigente. Nesse sentido, decisões polêmicas como a citada ADPF 54/DF, e mesmo a recente decisão (no Recurso Extraordinário 603.616) de permitir a polícia a invasão à propriedade privada mesmo sem liminar, possuem algum respaldo social, ainda que possam ser consideradas injustas.
Para terminar, uma sintética conclusão: quem precisa das engessadas (e retrógradas) vias democráticas, quando uma pessoa dotada de autoridade resolve os seus problemas?
Jansen R. Fernandes
Diurno
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