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domingo, 6 de dezembro de 2015

Bourdieu e ADPF 54

Pierre Bourdieu foi um sociólogo francês nascido na primeira metade do século XX. Em sua obra intitulada “O Poder Simbólico”, Bourdieu fala sobre o poder simbólico, do qual o Direito faz parte, que seria toda força que não está materializada concretamente mas que exerce pelo poder de alguma norma, de algum fato que distingue um ator social, uma instituição social ou um grupo. Fala também sobre a questão de que o Direito deve evitar o instrumentalismo (ideia de Direito a serviço da classe dominante), assim como o formalismo (entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais). 

Frente ao pensamento de Bourdieu, traz-se a tona a questão do aborto de fetos anencéfalos. No dia 17 de junho de 2004 a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde formalizou a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 54, visando com que fosse declarada a inconstitucionalidade da tipificação do aborto de anencéfalos como crime de acordo com o Código Penal brasileiro.

Lendo os pareceres em relação a ADPF, fica claro que a principal questão para o aborto de anencéfalos, assim como qualquer tipo de aborto, não ser permitida no Brasil é a questão religiosa. A religião no Brasil, principalmente a católica, é uma grande influenciadora do Direito. Apesar de em teoria o Estado ser laico, nossas leis não ultrapassam aquilo estabelecido pela religião. Nesse caso, o Direito estaria agindo com o instrumentalismo descrito e criticado por Bourdieu, agindo a serviço da classe dominante, fortemente vinculada ao catolicismo. Ainda em relação ao instrumentalismo, é importante falar que a proibição do aborto de anencéfalos também age a favor da classe dominante ao passo que no Brasil é uma realidade que as mulheres da elite abortam em clínicas clandestinas, já que têm dinheiro, já as de classes baixas morrem na tentativa. Quanto ao formalismo, o Direito não deve nunca ser aplicado apenas de maneira formal, ele depende das forças externas a ele e deve ser atento as pressões e necessidades sociais. Na página 220 de seu texto, Bourdieu escreve que “os juristas e outros teóricos do direito tendem a puxar o direito no sentido da teoria pura, quer dizer, ordenada em sistema autônomo e autossuficiente, e expurgado, por uma reflexão firmada em considerações de coerência e de justiça, de todas as incertezas ou lacunas ligadas à sua gênese prática; os juízes ordinários e outros práticos, mais atentos às aplicações que dele podem ser feitas em situações concretas, orientam-no para uma espécie de casuística das situações concretas”.

Outro fato a ser citado é o poder simbólico exercido pela Igreja Católica. Grande doutrinadora de opiniões e comportamentos, sempre condenou o aborto. No caso da ADPF 54 acabou-se por enfrentar em parte esse poder da Igreja Católica confrontando-o com embasamento médico. Nos pareceres da ADPF 54 é citado Nelson Hungria em “Comentários ao Código Penal” que diz que “Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto.”

Ao julgar-se procedente a ADPF 54 deu-se prosseguimento àquilo defendido por Bourdieu de afastar o Direito do formalismo e instrumentalismo, visando a defesa de diversos outros preceitos fundamentais da constituição e afastando o direito do poder simbólico da religião. A descriminalização do aborto de anencéfalos foi um importante passo para o Direito brasileiro, permitindo a escolha de uma mãe de interromper a gestação de um feto que não vingaria quando nascesse, podendo causar ainda mais dor. Apesar do avanço, ainda há muito para se conquistar no campo do Direito visando inclusive aquilo defendido por Bourdieu. O aborto acontece e continuará acontecendo. Precisamos falar sobre ele no campo social e jurídico.

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