Em meio à lama e à tensão predecessora da grandeza, os guerreiros Patriam e Gens amontoavam-se ao redor de uma miríade de irmãos combatentes, em uma das trincheiras do norte, do País Ditatorial. Gens havia sido agregado ao forte muito recentemente e, por conseguinte, ainda encontrava-se em adaptação. O clima era amistoso e o vento sussurrava estímulos e conjurações de força e coragem no íntimo etéreo de todos os presentes. A ansiedade ousava preencher a mente dos nossos honrados e admiráveis guerreiros, porém, o propósito era inabalável e, por ocupar integralmente a essência de todos, não cedia margens para contradições e incertezas. Era ele o responsável pela união intangivelmente fraterna entre cada um dos guerreiros.
O dia representava o receptáculo dos prenúncios da glória. Eles enfrentariam um dos gigantes mais temidos do universo – o qual possuía este título por ter condicionado a existência de uma praga intitulada de subversão que havia tornado todos aos quais é submetida em hereges, seguidores do Grande Criador. Alguns inimigos, ainda que desprovidos de natureza corpórea, são mais perigosos que outros.Os guerrilheiros foram meticulosamente selecionados para o intuito de dizimar este quadro problemático e inquietante. Suas vidas poderiam esvair-se e, caso este ponto extremo fosse alcançado, eles não enxergariam óbices nem contestariam. Se significasse o término definitivo da presença vinculante do gigante, a perda da vida não seria um problema considerável. Nada representaria maior importância do que o propósito. O amor por ele era desesperado, sedento e indestrutível. Era o que alimentava os guerrilheiros durante os dias de caminhadas infindáveis e os guiava com o cair da noite e a partir do abraço do frio.
Em determinado momento entre os sussurros do vento e o desenrolar da existência, Patriam, zelando pelo tom baixo de voz, disse:
- Gens, meu companheiro, está seguro de que tudo aquilo que poderá precisar na batalha contra o gigante está sob sua posse? Está com os mecanismos de aniquilação dos hereges? – Gens, tendo notado a evidente preocupação pela perfeição e completude por parte do amigo, não titubeou:
- Patriam, estimado guerrilheiro, tudo que pode nos ser útil já está recolhido e aguarda o momento de ser reclamado. Peguei todos os dispositivos de gás de dominação que sou capaz de carregar, não deixando de lado as balas de opressão. Ademais, para o caso dos hereges, certifiquei-me de que houvesse cetros de viabilização da perda da notoriedade. O gigante tem conseguido conceber um número catastrófico de hereges e, portanto, por garantia, estou carregando adagas de silenciamento e de destruição.
- Como sempre, precavido e exímio, Gens. A Ordem agradece pela sua dedicação e perfeição.
- Sinto-me honrado por lutar por ela durante as guerras revolucionárias, Patriam. A subversão não deve jamais continuar existindo. Essa praga tem acometido até mesmo a alma das nossas fronteiras. Ainda ontem me deparei com dois guerreiros defendendo a existência de tratados de paz, nos territórios neutros dos Direitos Humanos. Consegue articular algo tão tolo? – Apesar do tom de indagação, Gens não aguardou pela resposta. - Já imaginou? Domínios dos Direitos Humanos? Ninguém nem mesmo os usa para pastagem, após a morte dos príncipes Dignidade, Liberdade e Vida.
- De fato é algo insustentável, estimado Gens. Os territórios neutros são infrutíferos. O antigo triunvirato era contestável. Caso me permita, os domínios encontram-se em um estado melhor após o assassinato dos príncipes pela última guerrilha. Nunca tive afeição pelo Liberdade. Ele, na minha visão, sempre pareceu ingênuo. – Patriam franzia o cenho.
- Não há subterfúgio que sustente o contrário, exímio amigo. Os príncipes não eram dignos de respeito. Ouvi rumores de que a praga teve sua gênese nos limites do principado.
- São rumores muito assertivos, devo dizer. Não consigo imaginar uma justificação mais apropriada.
Antes que Gens pudesse oferecer alguma reação ao que foi dito pelo amigo, ambos (assim como todos na trincheira) ouviram o soar contínuo, característico e excruciante das trombetas.
- É chegada a hora, Gens. Levante-se e pegue a sua lança. O gigante espera por nós! – Finalizou Patriam, enquanto se erguia e, contemplativo, encarava o horizonte. Silhuetas escusas e indefinidas tornavam-se lentamente visíveis.
- Tenho conhecimento de que do gigante surgiu a natureza da praga; porém, qual é o nome dele? Origem? – Disse Gens, após ter se levantado.
- Chamam-no de muitos nomes, meu amigo. Diferença, Particularidade, Progresso... Há quem o chame, nos países fronteiriços, de Comunismo. Escolha o título que for da sua preferência.
Gens assentiu. As trombetas soaram somente mais uma vez indicando o momento da partida.
- Não posso dizer se nos encontraremos novamente, Gens, mas, caso não, gostaria de evidenciar um último fator: em hipótese alguma deixe que o gigante alcance a sua mente e o torne um dos seus seguidores lunáticos. O Propósito é o nosso norte, incondicionalmente. Tudo que fizermos deve ser em nome do Bem Coletivo. Tudo e qualquer coisa. Nada além dele pode e deve ser admitido. – Após ter dito isso, Patriam parte em direção ao herege mais próximo, que, como que sedento, corria apressadamente em direção à trincheira.
Antes que Gens pudesse também partir em direção à batalha, uma figura lendária e, portanto, inesquecível, assume contornos nítidos à frente do pôr-do-sol e do gigante (ou Grande Criador), que vinha logo atrás. Porém, assim não poderia ser. Gens pensava que as fênix haviam sido extintas. Estava enganado.
A figura, emergindo do horizonte e revestida por grandeza, era o Príncipe Liberdade.
Nota do escritor: para os leitores curiosos, indico a conferência da tradução dos nomes em latim dos nossos estimados e honrados guerrilheiros.
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