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sábado, 26 de junho de 2021

Diálogos "Interseculares": eu, Bacon e Descartes

Toda vez que me deparo com novos (ou mais profundos) pensamentos durante meus estudos, gosto de me imaginar em uma mesa de boteco com as pessoas fundadoras dessas ideias. Penso no que diria: “Isso faz sentido pra minha realidade” ou “desculpe a indelicadeza, mas suas ideias já foram refutadas por outras filosofias” ou “precisamos atualizar essas falas, hein?”. Longe de anacronismos, é só um exercício mental para entender o que eu- uma jovem universitária no século XXI- posso desfrutar do que estou estudando e que foi produzido em outros séculos.

Durante essa semana, em que tive contato com textos de Bacon e Descartes, dois pensadores modernos, não pude deixar de fazer essa atividade mental. Vou compartilhar o que se passou em minha cabeça, quem sabe isso não desperte novas reflexões sobre o que vocês falariam durante a conversa. Então, lá estaríamos nós: eu, Descartes, Bacon e a mesa de bar (em um cenário não pandêmico).

Descartes e Bacon não são dos amigos mais próximos que se pode ter, um racionalista e um empirista não conviveriam no auge dos afetos. Mesmo assim, embora tenham métodos diferentes, os dois se propuseram a buscar algo: o conhecimento, o que os diferencia é o caminho que traçaram. Enquanto Descartes diria entusiasmado que o saber se encontra através de uma dúvida que não se cansa de questionar, uma intelectualidade que se dá por meio da lógica e da razão, Bacon, cismado, teimaria em mostrar que o conhecimento se alcança através da superação dos enganos da mente humana, com o auxílio da experimentação, ou seja, na melhor das linguagens: “ver com os próprios olhos”, comprovar o que se acredita.

Depois de algumas intrigas entre os dois filósofos sobre os detalhes de seus ideais, talvez eles conseguissem me dizer algo em conjunto: o que buscam, em essência, é o conhecimento e a superação de uma esterilidade de ideias, ou seja: uma sabedoria que nos permita gerar transformações na sociedade. Eu, delicada que sou, começaria explicando que suas contribuições foram gigantescas para o ambiente em que estou hoje, uma universidade, pois elas nos deram a reflexão sobre a importância da racionalidade, da experimentação e da pesquisa para nós estudantes.

Mas, precisaria dizer: as suas ideias também foram utilizadas de maneira nociva por grupos poderosos que estão no mesmo ambiente que eu. Quando Descartes e Bacon dizem que é importante superarmos o senso comum para alcançarmos a verdade, eu questiono: o que é o senso comum? E o que é a verdade? Definitivamente, precisamos ser pessoas mais críticas, autênticas, é necessário analisar a sociedade. Mas, por muito tempo, tudo o que não era um conhecimento visto como acadêmico foi negligenciado e submetido a essa categoria: a cultura, as vivências sociais, as individualidades, os sentimentos...Não é possível ter neutralidade sobre essas partes do saber, muito menos buscar uma verdade exata sobre elas. No entanto, isso não as torna menos válidas ou as coloca no simples papel de senso comum, como muitas pessoas afirmaram.

Um conhecimento social ou uma sabedoria tradicional não possuem, ainda, o mesmo valor nas universidades, porque um dia disseram que precisamos de certa neutralidade acerca de nossos objetos de pesquisa. Um dia falaram que os sentimentos não constam como forma de análise para a experiência dos sentidos, mas hoje podemos ver as artes e a análise do sentir através da psicologia presentes na academia. Eu diria para Bacon e Descartes: o perigo de determinados pensamentos é acreditar que partimos do mesmo ponto de existência ou não possuímos desigualdades. E acrescentaria: a universidade é um espaço de disputa de racionalidades.

Por séculos, o conhecimento verdadeiro era aquele produzido dentro das salas de uma faculdade onde só entravam homens, brancos, cisheteronormativos e de classe média. Curandeiras, empregadas, trabalhadores rurais, mecânicos e mecânicas, metalúrgicos e metalúrgicas, cozinheiras, mães...todas essas pessoas tiveram seus saberes deslegitimados. Não é como se uma cozinheira não precisasse de um processo metodológico para descobrir quais os seus temperos mais eficientes em conjunto, ou como se uma curandeira não precisasse de séculos no repasse de conhecimentos para entender o poder das frutas, plantas e aromas que vêm da terra. Essas pessoas, que muitas vezes vieram de quilombos, favelas, cortiços, roças, fazem o nosso país e fazem nosso saber: essas pessoas, em sua grande maioria, são pessoas pretas, pardas e indígenas. Em uma nação racista, que colhe os frutos do seu passado escravista, encaramos a seguinte realidade: conhecimento que tem espaço na universidade e é visto como válido, por muito tempo, foi somente produzido por pessoas brancas.

A racionalidade branca é privilegiada na disputa universitária. Seja pelo lugar de fala privilegiado por quem contém minha racialidade, em que sempre teremos a voz mais ouvida do que de uma pessoa negra, por mais que sussurremos e ela esteja gritando; seja pela condição de neutralidade que nos é, de certa maneira, fornecida, nas ciências sociais. Eu, uma mulher branca, estudaria os processos do racismo com a neutralidade que Descartes e Bacon me propuseram na mesa de bar, porque eles estão distantes da minha pele, não afetam minha vida, psiquismo e subjetividade de forma opressiva. Agora, como falar de puro distanciamento na pesquisa para uma pessoa preta que quer estudar os processos que vivencia? E será que essa, tendo tais experiências (e, nesse sentido, apelo a Bacon), não poderia contribuir muito mais para a sociedade? A universidade, por muitos anos, quis estudar racialidade de maneira que pessoas pretas, pardas, indígenas e amarelas fossem objetos de estudos (mais uma vez como simples objetos, né?) e não sujeitos pesquisadores.

É por isso que, já me estendendo na noite pelo boteco, contaria aos dois sobre meus colegas de classe: pessoas negras, amarelas, pobres e mais velhas (assim como pessoas de grupos privilegiados) que habitam, por sorte minha, o mesmo espaço que eu. Tudo isso, através da Política de Cotas, e das políticas de permanência estudantil que existem na minha universidade. Em 2012, depois de séculos de escravidão e nenhuma retaliação que seja feita por parte do Estado, meu país decidiu assumir, ao menos, que a situação educacional no Brasil é de extrema desigualdade, e, desde então, pessoas de grupos étnicos oprimidos ocupam de forma crescente os espaços acadêmicos. Talvez a contragosto de diversos indivíduos que usaram Bacon e Descartes para defender as suas racionalidades hegemônicas, mas isso é mais um dos sensos comuns que existem no nosso século: acreditar que há um saber mais relevante, priorizar a neutralidade pura e se desvirtuar da realidade racista brasileira. Nesse quesito, talvez eu e os pensadores modernos concordássemos com algo no final da conversa: há um senso comum que deve ser mesmo superado, e que nos retrocede na busca por mais fontes de saber, o racismo que oprime parte majoritária da população brasileira.

-Letícia Magalhães, Noturno. 

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