O
julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental),
requerido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS) com a
finalidade de declarar inconstitucional a hipótese da criminalização do aborto,
qual seja, quando se tratar de fetos anencefálos, demonstra claramente várias
das teses apontadas por Bourdieu em sua obra O Poder Simbólico.
Bourdieu
entende a sociedade a partir do que ele chama de campos, que se interligam,
porém possuem certa autonomia. Cada campo que constitui a sociedade apresenta características
próprias e tem como mais essencial a existência da letra do poder simbólico,
como a linguagem jurídica no campo do Direito, e uma série de estruturas
incorporadas, denominadas de Habitus, que
servem para diferenciar seus membros dos outros campos e, ao mesmo tempo, homogeneizá-los
dentro de um mesmo campo. Para Bourdieu, o Direito constitui um campo diferenciado
dos outros, com uma maior autonomia e um poder simbólico distinto por sua
posição de destaque e capacidade de influência e agregação dos demais.
O
campo jurídico, apesar de sofrer a influência de pressões externas, busca fugir
do formalismo e do instrumentalismo através da racionalização dos problemas e
questões sociais, neutralizando-os, por meio da sintaxe caracterizada por
construções passivas e frases impessoais, e universalizando-os de modo a impor
universalmente ao reconhecimento, convertendo tais questões sociais em
necessidades simultaneamente lógicas e éticas. Outro aspecto importante
apontado por Bourdieu é a limitação da interpretação no âmbito jurídico pela
própria definição do espaço dos possíveis,
no qual as relações de forças específicas que lhe conferem a sua estrutura e
que orientam os conflitos de competência que nele têm lugar e a lógica interna
das obras jurídicas delimitam o universo das soluções propriamente jurídicas, não
havendo espaço para ideologias.
Desse
modo, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF, que autorizou
a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, primeiramente constata a
interação dos campos sociais, sendo que em diversos pontos do processo constatam-se
o conflito de poderes simbólicos éticos, jurídicos, morais e religiosos. Em
segundo lugar, o predomínio e a autonomia do campo jurídico em relação aos
demais são claros e se mostram também necessários para efetivar as decisões
estatais frente os diversos grupos sociais conflitantes, de modo a abrir o debate
entre as partes envolvidas e não prejudicando minorias. Em terceiro lugar,
torna-se evidente a incorporação de aspectos sociais pelo campo jurídico,
convertendo-os em sua linguagem própria, afinal, vê-se o debate acerca da
questão da vida transformado em um debate de princípios jurídicos
hierarquizados, como liberdade, dignidade da pessoa humana, saúde e autodeterminação.
Por fim, é interessante destacar o papel da hermenêutica nesse caso, pois,
dentro do espaço dos possíveis, o
Ministro Marco Aurélio pode incorporar as questão do aborto e tomar uma decisão
jurídica afastada do senso comum, beneficiando a minoria de mulheres que
desejam interromper a gestação de anencéfalos e fazendo o Direito exercer seu
papel de gerador de habitus no
próprio campo jurídico e na sociedade em geral.
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