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sábado, 14 de setembro de 2019

Judiciário: agir ou não agir?

Em uma sociedade que ainda presencia atitudes como a do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que solicitou a apreensão de livros de uma bienal por não concordar com a presença de um beijo gay em umas das páginas de um HQ, a atuação do Poder Judiciário, como a exibida no caso da ADI 4.277 / DF, que visava  equiparar os direitos e os deveres da união entre pessoas do mesmo sexo aos das uniões estáveis de pares heteroafetivos, com decisão unânime favorável aos casais homoafetivos, representa, por mais que seja alvo de críticas, uma ação necessária diante do silêncio do Legislativo.
 A ADI 4.277 / DF, julgada em 2011, resultou de arguição de descumprimento de preceito fundamental, na qual o Governador do Estado do RJ expunha que a interpretação do Estatuto dos Servidores Civis do Estado do RJ  promovia a não equiparação dos direitos entre as pessoas com orientação homossexual e os demais servidores. Esse caso evidencia que debates de grande repercussão social e política estão sendo direcionados aos tribunais, em um fenômeno que não se encontra  limitado ao Brasil, mas expandido ao mundo todo e marcado pela precipitação do poder às instâncias do Judiciário.
São inúmeras as críticas que se levantam contra a judicialização, muitos questionam a legitimidade  dos membros do Poder Judiciário, que não foram eleitos pelo voto do povo, para invalidar ou sobrepor uma decisão do Executivo, ou do Legislativo, cargos que ostentam a legitimação de serem resultado da vontade popular, além da visualização da sua falta de aptidão para agir em determinadas matérias. Ingeborg Maus alimenta sua crítica aos contínuos processos de intervenção judicial os caracterizando como resultado de infantilização da sociedade, na qual o judiciário surge como uma figura paternal, venerado  quase que religiosamente em um cenário que pode disfarçar um desejo autoritário de domínio de uma Justiça elevada à condição de instância definidora dos valores da sociedade e da moral pública, sustentada por uma sociedade órfã que se apega aos Tribunais, que, por sua vez, acabam se auto referenciando, e se afastando da própria Constituição, tornando-se o próprio arcabouço do que é lei, do que é conduta, em uma clara ameaça à democracia.
Antonie Garapon, ao discorrer sobre centralização do poder judiciário, indica que a democracia liberal ao potencializar a autonomia do indivíduo, e lhe oferecer uma liberdade, impõe a ele responsabilidades que antes não dependiam de sua participação. Esse indivíduo, na modernidade, inserido na democracia liberal, acaba se fragilizando, não conseguindo manter essa situação e, assim, recorrem à tutela do judiciário. Diante das desigualdades inseridas dentro de uma igualdade pregada pela democracia liberal, a estratégia que ainda há é recorrer ao judiciário. O autor cita a magistratura do sujeito, ou seja, uma papel dado à justiça para atuar diante da mazelas do indivíduo moderno, uma maneira do direito oferecer  formas de inclusão e de igualdade em um corpo social marcado pela perspectiva da indiferença, pela hipertrofia do individualismo, no qual se intensifica, também, uma certa desidratação dos magistrados naturais, um enfraquecimento das autoridades e dos laços sociais tradicionais, aparecendo, neste cenário, o juiz estatal como apto para a dissolução dos conflitos que antes eram resolvidos sem a interferência do judiciário. Para Garapon, a função tutelar da justiça, passa, então, a ser mais requerida do que sua função arbitral, em uma demanda que a ela não está pronta para atender.
Apesar das críticas, a atuação do Supremo Tribunal Federal nesta ação direta de inconstitucionalidade exibe apenas que o judiciário foi provocado e se manifestou dentro dos limites estabelecidos pela própria Constituição Federal, que lhe  atribui esse papel. No seu voto o relator Ayres Britto buscou interpretar conforme à Constituição o artigo 1.723 do Código Civil, que apresenta a união estável como uma relação entre o "homem e a mulher", e, assim, afastar qualquer entendimento preconceituoso, defendendo a  isonomia entre casais héteros e homoafetivos, diante da necessidade de uma interpretação que não reduza o conceito de família à dicotomia homem/mulher, e que não viole os preceitos fundamentais da igualdade, da liberdade, da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana constantes na Constituição, que não traz qualquer distinção entre a família formada por pares heteroafetivos ou por casais do mesmo sexo, e que, muito menos, traz qualquer interdição à última. Dessa forma, o relator, acompanhado pelos outros ministros, votou pela equiparação das uniões estáveis homoafetivas às demais, com vistas a promoção  e defesa da autonomia de vontade, do direito à intimidade e à privacidade. 

Quando temas controvertidos são colocados no âmbito do judiciário, uma vez que tais temáticas não foram consolidadas no debate político, o que não pode ser admitido é repousar sobre os tribunais o protagonismo desse fenômeno, que deve ser colocado sobre os atores sociais que, em busca de uma materialização da igualdade,  recorrem ao Poder Judiciário. Portanto, apesar das críticas, exemplificadas nas perspectivas defendidas por Maus e Garapon, que mesmo produzidas em um cenário europeu, são pertinentes ao Brasil, a mobilização do STF neste caso, assim como nos demais, representa uma solução encontrada para a efetivação de direitos de grupos que se encontram desamparados pela não ação do Legislativo e do Executivo  perante suas demandas específicas. O Judiciário, mesmo que de maneira frágil e permeada por incompletudes, oferece, ainda que minimamente, um abrigo e amparo aos grupos vulneráveis. Pode-se afirmar que a decisão da ADI 4.277/DF representa uma conquista que não insurgiu do bloco do governo, mas sim do judiciário. A judicialização acontece para além da vontade ou contravontade, uma vez que as necessidades e as desigualdades continuam a reivindicar meios para suas resoluções.

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