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domingo, 20 de novembro de 2022

 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF - 186 instituiu um sistema de vagas com base em critério étnico-racial, isto é, cotas, no processo de seleção para ingresso em instituição pública de ensino superior. Essa ocorrência é importante na história do Brasil, um país que historicamente marginaliza pessoas racializadas, concomitante a alegação, por parte de muitos brasileiros, de que existiria democracia racial no território brasileiro. Esse conceito foi desenvolvido por Gilberto Freyre em "Casa-grande e Senzala", onde há a afirmação de que os senhores - brancos - e os escravizados - pretos - viviam em uma relação cordial. Entretanto, cabe destacar que isso inexistiu no período colonial, assim como inexiste no panorama hodierno brasileiro: entre 2003 e 2013, o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, ao passo que o índice de feminicídios de brancas caiu 10% no mesmo período de tempo (Mapa da Violência 2015), a população negra corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios (IPEA), mais da metade (61,6%) da população prisional do Brasil são pretos e pardos (Infopen), entre outros infelizes dados. 

      Nesse sentido, a vivência de pessoas brancas e de pessoas racializadas são marcadas por profundas divergências no que tange à educação, saúde, segurança e ao trabalho digno, ou seja, não existe igualdade no acesso de oportunidades. É justamente nessa chave que as cotas raciais para ingresso no ensino superior ganham destaque, a fim de minimizar tal diferença e propiciar maior acesso à cidadania plena por parte de pessoas pretas, visto que a educação é fundamental para a construção de uma vida digna e autônoma. Assim, ainda não está dentro do espaço dos possíveis a equiparação da vivência de pessoas brancas e racializadas, porém, foi possível a inserção de cotas raciais, visando o aumento de pessoas pretas em faculdades públicas. Essa instituição, a partir da ADPF 186, estava dentro do espaço dos possíveis pois respeita e está de acordo com a Constituição Federal, a composição social do Brasil, o campo jurídico e o campo dos movimentos sociais. 

      Entretanto, apesar da instituição das cotas ter sido bem recebida pelos campos supracitados, parcela significativa da sociedade brasileira se mobilizou contra, através da afirmação de que isso violaria o conceito de igualdade presente na Constituição. Importante sublinhar que essa ideia refere-se à igualdade formal, e as cotas raciais estão calcadas na igualdade material. Ademais, a Câmara e o Senado são orgãos representativos dessa mesma sociedade, majoritariamente racista, e, portanto, qualquer mudança via legislativo seria mais difícil do que pelo judiciário, como a ADPF em questão. Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal teve o papel de magistratura do sujeito, pois tutelou direitos imprescindíveis à população racializada brasileira, e que provavelmente demorariam anos para ocorrer através da Câmara, devido ao racismo estrutural vigente na mentalidade da maioria dos brasileiros e de seus representantes institucionais. 

      À vista disso, ocorreu um aprofundamento da democracia e dos valores da Constituição Cidadã de 1988, pois o aumento de pessoas racializadas em faculdades públicas aumenta a vivência de uma cidadania plena para grande parte da população brasileira, além de deixar as salas de aulas em uma composição semelhante ao Brasil, em que 54% da população é negra, de acordo com o IBGE. 

      Além de estender a cidadania, esse resultado modifica diretamente a vida de milhares de pessoas, de forma fática, estrutural, cultural e, também, no que concerne às lutas posteriores. A priori, modifica fática e estruturalmente pois a educação superior oferece inúmeras oportunidades relativas à educação, intercâmbios, melhores empregos etc que culminam na possibilidade de aumentar a renda familiar. Outrossim, culturalmente, pois traz à tona e vira objeto de discussão o fato de as pessoas pretas serem historicamente marginalizadas do processo educacional brasileiro. Também, o acesso à universidade possibilita a produção acadêmica, inclusive de teorias que podem servir de base à luta antirracista. Ainda no que concerne a essa luta, a inserção de cotas raciais também modifica esse panorama, visto que viabiliza a cobrança da melhoria e ampliação desse sistema, mais acesso à educação, investimento das universidades, entre outros. 

    Está presente no Acordão da ADPF 186 a afirmação de que essa metodologia diferenciada de seleção assegura que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, o que está de acordo com a rejeição da monocultura do saber, conceito presente no artigo de Sara Araújo. Segundo ela, "a monocultura do saber e do rigor do saber transforma a ciência moderna e da alta cultura em princípios únicos de verdade e qualidade estética. Tudo o que não reconhece, não existe ou é irrelevante", ou seja, o pensamento dominante, que é branco, é tido como universalizante, ao passo que outras ideais são minimizadas e entendidas como inferiores. Portanto, o sistema de cotas raciais também possibilita o pluralismo de ideias, concomitante à desconstrução de que apenas o saber historicamente hegemônico, o branco, seria válido. 

      Além disso, é importante salientar que além das críticas ao sistema de cotas raciais serem baseados na concepção de igualdade sob o ponto de vista formal, também são baseadas em argumentos falaciosos, com a efabulação, isto é, construção de fatos inventados sobre pessoas pretas. Como exemplo, pode-se mencionar o entendimento imaginário de que pessoas pretas estariam tirando oportunidade de pessoas brancas, sendo que a maioria dessas já tem seus direitos garantidos e, na verdade, o que ocorre é a equiparação de oportunidades. Por fim, destaca-se que essas falácias decorrem da desumanização de pessoas racializadas, ou seja, a anulação delas enquanto indivíduos que merecem direitos relativos à educação. 

Bárbara Canavês Domingos - 1° ano direito noturno 

 

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