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domingo, 20 de novembro de 2022

O significado das cotas raciais para o Brasil

 A ADPF 186, interposta pelo partido Democratas (DEM) tinha por objetivo declarar que as cotas raciais adotadas de maneira interna e pioneira pela UNB eram inconstitucionais. Sendo assim o debate da ADPF girava entorno do direito ao acesso à universidade – muito mais difícil para pessoas pretas pardas e indígenas – e à igualdade – que segundo os requerentes era violada pelas ações afirmativas.

Dessa forma, o espaço dos possíveis para a implementação das cotas raciais já havia sido aberto por outros países no planeta, como Índia e Estados Unidos para permitir que grupos antes excluídos dos espaços de produção de conhecimento acadêmico pudessem ter acesso às universidades. Além disso, mobilizações populares desde 2006, encabeçadas pela Conferência dos Intelectuais da África e da Diáspora, em Salvador, somadas à iniciativa da UNB de reservar vagas em seu vestibular para pessoas pretas, pardas e indígenas fez ampliar o espaço dos possíveis para a possibilidade de cotas raciais em todas as universidades do país.

O problema é que, para algumas pessoas, esta seria uma violação a direitos como liberdade e igualdade. Acontece que quem defende o fim das cotas raciais o faze a partir de uma análise rasa do texto legal (que garante que todos sejam iguais e que, portanto, mereçam tratamento igual) ao qual não somam uma interpretação da realidade brasileira, na qual, embora pessoas negras sejam numericamente maioria, essa quantidade efetivamente não é vista nos bancos das universidades, em especial, nas mais concorridas do país.

Assim, no caso da ADPF 186, o direito tutelado é o direito à educação superior. Nesse caso, com a decisão de que as cotas raciais não rompem com o princípio de igualdade presente na Constituição, o que se faz é universalizar o direito na tentativa de deixá-lo mais neutro frente à sociedade. Isto porque, considerando as desigualdades historicamente impostas entre brancos e negros, tratar de modo semelhante os dois grupos seria aumentar ainda mais a distância que os separa. Deste modo, neutralizar o direito significa tratar os desiguais na medida de sua desigualdade, pois somente desta forma é possível garantir a igualdade material, isto é, a igualdade de fato entre eles.

Logo, é possível dizer que o Brasil, por muitas vezes perdeu a chance de tornar as leis mais compatíveis com o seu tempo, especialmente no caso do racismo estrutural que permeia a necessidade de cotas raciais no século XXI. Tendo em vista que desde que o colonizador europeu pisou em terras brasileiras, ele subjugou, explorou, escravizou, aculturou e criminalizou tradições tanto dos povos indígenas quanto dos africanos trazidos como escravos e que a abolição da escravatura terminou com indenizações aos fazendeiros, e não aos escravizados recém-libertos, fica evidente que desde 1888 o país perdeu a chance de proporcionar a pretos, pardos e indígenas as mesmas condições de cidadania oferecidas à população branca. Por isso, a iniciativa da UNB somada à decisão pela constitucionalidade das cotas dada pelo STF é, na verdade, tomar um caminho que busca corrigir os erros do passado e historicizar a norma, para que ela seja mais adequada ao contexto brasileiro do século XXI.

A decisão da ADPF 186 é ainda mais relevante pois ela significou, não um ativismo judicial, como muitos podem afirmar, mas a tutela de direitos ameaçados pelo pedido apresentado pelo partido Democratas pela inconstitucionalidade das cotas raciais. Isso porque, o tribunal não agiu por vontade própria nem deliberou a partir, exclusivamente do ponto de vista dos juízes. Ao contrário, o Supremo Tribunal Federal, nesse caso, se mostrou uma instituição compromissada com a Constituição brasileira, em especial com a busca pela igualdade material entre os cidadãos do país.

Sendo assim, o direito tutelado pela decisão do STF foi o de igualdade material e o de acesso às universidades. Tal direito, numa sociedade marcadamente racista dificilmente seria objeto de um projeto de lei exitoso em um congresso evidentemente conservador e, mais ainda, majoritariamente branco. Dessa forma, a função do judiciário entendida por Garapon como “magistratura do direito” entra em campo para garantir a tutela de direitos na ausência de uma legislação para o assunto. Nesse sentido, o caso das cotas raciais é ainda mais emblemático, pois, após a decisão do STF, uma lei sobre o assunto seria formulada.

Além disso, a alegação feita por alguns, de que a decisão pela constitucionalidade das cotas raciais acaba com a “segurança jurídica” torna ainda mais evidente o que Garapon chamou de antecipação. Isto porque a “segurança jurídica”, nesses casos deve ser colocada um pouco de lado para que seja possível garantir direitos urgentes, como o acesso à universidade por pessoas pretas, pardas e indígenas.

Portanto, a tutela jurídica deste direito aprofunda a democracia na medida em que o judiciário cumpriu sua função constitucional de mediar conflitos de interesses que se embasem nas leis. Ademais, o acesso de pessoas que partem de lugares completamente diferentes aos centros de conhecimento acadêmico fortalece a democracia nesses espaços e pode levar à redução das monoculturas do saber tão latentes nas universidades brasileiras.

Outro ponto que vale destacar é que, neste caso, quem mobiliza o direito é um grupo socialmente privilegiado, mas que se vê “ameaçado” por políticas de ações afirmativas, o que demonstra que não apenas os grupos marginalizados da sociedade recorrem aos tribunais para a proteção de seus direitos, como também os mais poderosos buscam no poder judiciário a confirmação de seus privilégios.

No nível estratégico, o resultado obtido pela ADPF 186 modifica os paradigmas jurídicos pois nega os argumentos de uma classe privilegiada, que leva o caso ao tribunal, e porque demonstra alguma abertura da mais alta corte brasileira à tutela de direitos de pessoas historicamente marginalizadas no Brasil. No nível constitutivo, o resultado da constitucionalidade das cotas busca transformar a cultura social geral na medida em que a inserção de pessoas a quem antes o acesso às universidades era praticamente negado muda as perspectivas de avanço para as pessoas pretas, pardas e indígenas, especialmente afetando as crianças desses grupos, as quais agora veem aumentar a possibilidade de acessarem o ensino superior e, consequentemente, espaços de destaque na sociedade.

Portanto, é possível dizer que as cotas raciais permitem que pessoas que antes estavam “do outro lado da linha abissal” a cruzem para acessar novas perspectivas. Além disso, a presença de mais diversidade nos bancos das universidades também leva a crer que, no futuro, talvez seja possível uma nova epistemologia presente na academia de modo que o ponto de vista europeu, hoje dominante, venha a dividir espaço com pensamentos do sul global. Essa mudança, porém, somente é possível quando a monocultura do saber ocidental e do norte­­­­­­­­­, que considera legítimos apenas os conhecimentos produzidos de acordo com seus critérios, deixe de existir, abrindo espaço para uma real ecologia de saberes.

Maria Júlia M. Leonel, 1º ano Direito matutino

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