A ADPF 186, interposta pelo partido Democratas (DEM) tinha por objetivo declarar que as cotas raciais adotadas de maneira interna e pioneira pela UNB eram inconstitucionais. Sendo assim o debate da ADPF girava entorno do direito ao acesso à universidade – muito mais difícil para pessoas pretas pardas e indígenas – e à igualdade – que segundo os requerentes era violada pelas ações afirmativas.
Dessa forma, o espaço dos
possíveis para a implementação das cotas raciais já havia sido aberto por
outros países no planeta, como Índia e Estados Unidos para permitir que grupos
antes excluídos dos espaços de produção de conhecimento acadêmico pudessem ter
acesso às universidades. Além disso, mobilizações populares desde 2006,
encabeçadas pela Conferência dos Intelectuais da África e da Diáspora, em
Salvador, somadas à iniciativa da UNB de reservar vagas em seu vestibular para
pessoas pretas, pardas e indígenas fez ampliar o espaço dos possíveis para a
possibilidade de cotas raciais em todas as universidades do país.
O problema é que, para algumas
pessoas, esta seria uma violação a direitos como liberdade e igualdade. Acontece
que quem defende o fim das cotas raciais o faze a partir de uma análise rasa do
texto legal (que garante que todos sejam iguais e que, portanto, mereçam tratamento
igual) ao qual não somam uma interpretação da realidade brasileira, na qual,
embora pessoas negras sejam numericamente maioria, essa quantidade efetivamente
não é vista nos bancos das universidades, em especial, nas mais concorridas do
país.
Assim, no caso da ADPF 186, o
direito tutelado é o direito à educação superior. Nesse caso, com a decisão de
que as cotas raciais não rompem com o princípio de igualdade presente na
Constituição, o que se faz é universalizar o direito na tentativa de deixá-lo
mais neutro frente à sociedade. Isto porque, considerando as desigualdades historicamente
impostas entre brancos e negros, tratar de modo semelhante os dois grupos seria
aumentar ainda mais a distância que os separa. Deste modo, neutralizar o direito
significa tratar os desiguais na medida de sua desigualdade, pois somente desta
forma é possível garantir a igualdade material, isto é, a igualdade de fato entre
eles.
Logo, é possível dizer que o
Brasil, por muitas vezes perdeu a chance de tornar as leis mais compatíveis com
o seu tempo, especialmente no caso do racismo estrutural que permeia a
necessidade de cotas raciais no século XXI. Tendo em vista que desde que o colonizador
europeu pisou em terras brasileiras, ele subjugou, explorou, escravizou,
aculturou e criminalizou tradições tanto dos povos indígenas quanto dos africanos
trazidos como escravos e que a abolição da escravatura terminou com
indenizações aos fazendeiros, e não aos escravizados recém-libertos, fica
evidente que desde 1888 o país perdeu a chance de proporcionar a pretos, pardos
e indígenas as mesmas condições de cidadania oferecidas à população branca. Por
isso, a iniciativa da UNB somada à decisão pela constitucionalidade das cotas
dada pelo STF é, na verdade, tomar um caminho que busca corrigir os erros do
passado e historicizar a norma, para que ela seja mais adequada ao contexto brasileiro
do século XXI.
A decisão da ADPF 186 é ainda
mais relevante pois ela significou, não um ativismo judicial, como muitos podem
afirmar, mas a tutela de direitos ameaçados pelo pedido apresentado pelo
partido Democratas pela inconstitucionalidade das cotas raciais. Isso porque, o
tribunal não agiu por vontade própria nem deliberou a partir, exclusivamente do
ponto de vista dos juízes. Ao contrário, o Supremo Tribunal Federal, nesse
caso, se mostrou uma instituição compromissada com a Constituição brasileira,
em especial com a busca pela igualdade material entre os cidadãos do país.
Sendo assim, o direito
tutelado pela decisão do STF foi o de igualdade material e o de acesso às
universidades. Tal direito, numa sociedade marcadamente racista dificilmente seria
objeto de um projeto de lei exitoso em um congresso evidentemente conservador
e, mais ainda, majoritariamente branco. Dessa forma, a função do judiciário
entendida por Garapon como “magistratura do direito” entra em campo para
garantir a tutela de direitos na ausência de uma legislação para o assunto.
Nesse sentido, o caso das cotas raciais é ainda mais emblemático, pois, após a
decisão do STF, uma lei sobre o assunto seria formulada.
Além disso, a alegação feita
por alguns, de que a decisão pela constitucionalidade das cotas raciais acaba
com a “segurança jurídica” torna ainda mais evidente o que Garapon chamou de antecipação.
Isto porque a “segurança jurídica”, nesses casos deve ser colocada um pouco de
lado para que seja possível garantir direitos urgentes, como o acesso à
universidade por pessoas pretas, pardas e indígenas.
Portanto, a tutela jurídica
deste direito aprofunda a democracia na medida em que o judiciário cumpriu sua
função constitucional de mediar conflitos de interesses que se embasem nas
leis. Ademais, o acesso de pessoas que partem de lugares completamente diferentes
aos centros de conhecimento acadêmico fortalece a democracia nesses espaços e
pode levar à redução das monoculturas do saber tão latentes nas universidades
brasileiras.
Outro ponto que vale destacar
é que, neste caso, quem mobiliza o direito é um grupo socialmente privilegiado,
mas que se vê “ameaçado” por políticas de ações afirmativas, o que demonstra
que não apenas os grupos marginalizados da sociedade recorrem aos tribunais para
a proteção de seus direitos, como também os mais poderosos buscam no poder
judiciário a confirmação de seus privilégios.
No nível estratégico, o
resultado obtido pela ADPF 186 modifica os paradigmas jurídicos pois nega os
argumentos de uma classe privilegiada, que leva o caso ao tribunal, e porque
demonstra alguma abertura da mais alta corte brasileira à tutela de direitos de
pessoas historicamente marginalizadas no Brasil. No nível constitutivo, o resultado
da constitucionalidade das cotas busca transformar a cultura social geral na
medida em que a inserção de pessoas a quem antes o acesso às universidades era
praticamente negado muda as perspectivas de avanço para as pessoas pretas, pardas
e indígenas, especialmente afetando as crianças desses grupos, as quais agora veem
aumentar a possibilidade de acessarem o ensino superior e, consequentemente, espaços
de destaque na sociedade.
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