O reconhecimento da pluralidade
Em 2004, o Partido Democratas ajuizou uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal, ADPF nº 186/ DF, questionando a Universidade de Brasileira e seu pioneirismo na adoção de cotas raciais. O debate dessa discussão girava em torno da legitimidade e constitucionalidade dessa decisão, questionando se a decisão não feria normas constitucionais.
De inicio, compreende-se por cotas raciais uma ação afirmativa de reservas de vaga em instituições de ensino, por raça ou etnia, com o objetivo de conter os preconceitos e as desigualdades socioeconômicas que compõem a estrutura da sociedade brasileira. O principal argumento do Partido Democrata era que as cotas feriam inúmeros fundamentos constitucionais, como o princípio da dignidade humana, direito universal à educação e a necessidade de promover o bem de todos sem distinções. Todavia, é evidente que, em razão das condições históricas das pessoas negras brasileiras e em função do racismo estrutural perpetuado na sociedade brasileira, há uma desigualdade no acesso às universidades - muito mais difícil para pretos, pardos e indígenas. Contudo, o que o partido questionava era um "racismo reverso", ou seja, afirmavam que essa ação afirmativa de cotas promoveria uma desigualdade entre os beneficiados por ela e aqueles que nela não estavam inseridos, alegando serem medidas racistas e que ferem a dignidade da pessoa beneficiada.
Esse debate resultou no reconhecimento, por unanimidade, do STF à legitimidade das cotas raciais e sua implementação, que, posteriormente, resultaria na formulação das Leis de Cotas.
Para Pierre Bourdieu, o direito deve tolerar e aderir às complexidades e heterogeneidades do meio social, solucionando as disputas existentes em seu interior, de maneira justa, conciliando essas desigualdades. Em outras palavras, o direito é uma força resultantes das demandas e disputas sociais, assim, se faz preciso que as normas jurídicas trabalhem em cima da inclusão. Logo, compreende-se que as cotas reafirmam direitos de igualdade, que não são materialmente cumpridos, favorecendo aqueles que são marginalizados e que sofrem do racismo estrutural existente na sociedade brasileira.
Nessa perspectiva, os negros, então, são vítimas de uma violência que não é só física, mas também simbólica - isto é, moral e psicológica. Isso em função do habitus da classe dominante que transpassa seu discurso racista de geração por geração, assegurando uma hierarquia e desigualdade social que coloca os brancos como dominantes. Por essa razão, é essencial que ocorra uma historização da norma, ou seja, que as normas sejam adaptadas às demandas sociais contemporâneas, atendendo aos direitos fundamentais .
Ainda nessa linha de raciocínio de Bourdieu, por fim, discute-se sobre os espaços dos possíveis. é fato que a dinâmica social altera o espaço dos possíveis, o qual é delimitado pelo ordenamento jurídico. Primeiro, compreende-se que esse espaço abrange tudo aquilo que é realizável em um meio. Porém, se esse espaço é delimitado pela ordem jurídica, o direito não deve ser algo estático, mas sim variável ao tempo, espaço e a moral dominante na sociedade. Com isso, entende-se com mais facilidade a importância da historização das normas, a fim de que as intolerâncias às minorias sejam juridicamente combatidas e a moral social alterada.
Segundo Garapon, o Direito é resultado de ações sociais que dão visibilidades a pautas coletivas. Assim, a justiça trabalha com a garantia da igualdade material de direitos. Se cotidianamente o sistema marginaliza determinado segmento social, a ação afirmativa debatida em questão não só se torna essencial, como também atua no aprofundamento da democracia. Logo, para o pensador, o Direito atua como uma ferramenta de transformação social, indo contrário a reprodução de discursos discriminatórios.
No caso discutido, visto a inércia do Poder Legislativo e a nula elaboração de políticas públicas coube aos magistrados fomentar a inclusão e mitigar a discriminação. É por essa razão que Garapon diz que as democracias atuais amplificam a necessidade de atuação da justiça, visto que é transferido ao Poder Judiciário a função de assegurar a busca de direitos. Em outras palavras, a sociedade recorre à justiça para socorrer aqueles socialmente marginalizados. Como defendido por Luís Roberto Barroso, ministro do STF, o juiz deve empurrar a história quando ela emperrar, analisando com ousadia o sentido social e histórico de certas normas.
Ademais, vale ressaltar as ideias de McCann, o qual enxerga a mobilização do direito como uma resposta à ausência de políticas e normas públicas. Dessa forma, a mobilização do direito, vista como uma ação coletiva, pressionam os poderes políticos, em especial o judiciário, inertes à problemática discutida. Portanto, um tema ganha relevância no meio político, jurídico e social e a reinvindicação de direitos também, possibilitando que a cultura dominante desigual seja superada ou diminuída.
Segundo Sara Araújo, há uma epistemologia do norte que impõe culturas e valores para o mundo todo, de modo que o sul fique esquecido. Assim, a invalidação do sul pelo norte colaboram para que sejam consideradas válidas apenas aquelas culturas e ideologias produzidas pelos dominantes. Logo, conforme Sara, o direito que engloba as perspectivas jurídicas atuais é fundamentado em velhos conceitos eurocêntricos.
Contudo, a ADPF 186 vai contra esse eurocentrismo, afirmando a possibilidade de, através de ações afirmativas, amenizar as desigualdades sociais e a marginalização de uma minoria, superando um preconceito histórico. Sendo assim, a monocultura global eurocêntrica abre espaço para um pluralismo que aceita e tolera os marginalizados.
Consequentemente, evidencia-se que a decisão do STF sobre a ADPF 186 foi extremamente necessária, contribuindo para a concretização da igualdade material buscada pelo texto constitucional, além de ser uma tentativa de diminuir a desigualdade estrutural brasileira. Assim, nota-se a ampliação da democracia, em vista da proteção das minorias e o reconhecimento do racismo estrutural como uma problemática a ser combatida. Por fim, reconhecer as cotas raciais garantem que a democracia acompanhe as demandas sociais.
MIRELLA BERNARDI VECHIATO - MATUTINO
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