A Arguição de Descumprimento do Preceito Fundamental (ADPF) 186 fora ajuizada pelo Partido Democratas (DEM) e colocava como improcedente e inconstitucional a existência de cotas étnico-raciais, precisamente expressas pela a Ata da Reunião Extraordinária do Conselho Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), realizada em 06 de junho de 2003; a Resolução 38 do CEPE, de 18 de junho de 2003; o Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial, no que concerne a seus objetivos, ações para alcançá-los, definição do acesso à universidade, permanência na universidade e caminhos para a implementação do plano; e itens do Edital 2, referente ao segundo vestibular de 2009, de 20 de abril de 2009, do Centro de Seleção e Promoção de Eventos (CESPE) da Universidade de Brasília (UnB), sendo esta uma instituição vanguardista no país ao promover este sistema de inclusão. Nesse sentido, o parecer do Supremo Tribunal Federal foi de considerar como improcedente esta ADPF, de modo a afirmar as cotas étnico-raciais como constitucionais representando um passo importante para a promoção de garantias de direitos a grupos historicamente excluídos. Dessa maneira, faz-se imperiosa a discussão acerca da importância do sistema de integração por meio das cotas étnico-raciais nas universidades brasileiras, de modo a discorrer sobre os seguinte tópicos: acerca de sua pertinência, sobre a ação do tribunal, os efeitos desta ação, e a propiciação da ecologia dos saberes.
Em
primeiro plano, é preciso ressaltar que as cotas representam um avanço na promoção
e asseguração de direitos materiais, de modo a ser, desta forma, de extrema relevância
e pertinência ao país. Nesse sentido, do panorama histórico, entende-se que a
população preta sempre sofrera com estigmas e preconceitos baseados em raízes do passado escravocrata do país que, dado uma Lei Aurea tardia e sem provisão
de integração - demonstrando uma postura negligente quanto a estes grupos – propiciou
a manutenção de um quadro de exclusão. Além disso, observa-se que o mito da democracia
racial, colocado pela obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire, muito
cultuado e ainda presente no imaginário de alguns brasileiros, demostra nada mais
do que um véu sobre o racismo presente nas relações sociais do país. Tal tópico
é discutido no voto do Min. Luiz Fux, o qual ressalta que “Não se
trata, como afirmou o partido requerente da
ADPF, de uma “infeliz correlação entre a cor do indivíduo, pobreza e a qualidade do estudo”, fazendo crer que tudo não
passaria de obra inescapável do destino, uma
triste coincidência. As estatísticas de hoje
são produto de ações pretéritas. Revelam com objetividade as cicatrizes profundas deixadas pela opressão racial de anos
de escravidão negra no Brasil. Nesse período
da história nacional, a cor da pele dizia,sem qualquer pudor, o lugar do
indivíduo na sociedade Dessa
maneira, entende-se que, compreendidos em um panorama histórico de exclusão, que
se reflete na entrada nas universidades, é de extrema importância a integração através
das cotas, uma vez que tal ação está compreendida no “Espaço dos Possíveis” de
Pierre Bourdieu – referente as possibilidades de efetivação e compatibilização
da norma com sua realidade -, referidos tanto por lutas sociais quanto positivos
em, por exemplo, na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 1968,
segundo o qual ações afirmativas são “(...) medidas especiais e concretas para assegurar
como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos
pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de
igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais ”, ela se faz permanente já que viabiliza a promoção
da igualdade material dos Direitos pleiteados decorrendo de uma historicização
desta demanda por este grupo. Acerca deste cenário, a jurista Daniela Ikawa expõe
que: “O
princípio formal de igualdade, aplicado com exclusividade, acarreta injustiças (...)
ao desconsiderar diferenças em identidade. (...) Apenas o princípio da
igualdade material, prescrito como critério distributivo, percebe tanto aquela
igualdade inicial, quanto essa diferença em identidade e contexto. Para
respeitar a igualdade inicial em dignidade e a diferença, não basta, portanto,
um princípio de igualdade formal. (...) As políticas universalistas materiais e
as políticas afirmativas têm (...) o mesmo fundamento: o princípio
constitucional da igualdade material.” Nesse sentido, verifica-se que devem existir mecanismos
que promoção a igualdade material, de modo a superar seu caráter meramente
formal que não disponibiliza os mecanismos práticos de efetivação dos direitos,
reforça, tal visão, Boa Ventura de Souza Santos em “Há necessidade de uma
igualdade que reconheça as diferenças e de uma
diferença que não produza, alimente ou reproduza
as desigualdades”. Logo, verifica-se que as questões
históricas ligadas a exclusão e preconceitos para com esses grupos demandam de
ações que promovam a igualdade material, estando essas contempladas pelo Espaço
dos Possíveis, pertinentes ao caráter de historicização da norma, e refletem um
sistema racionalizado que garante direitos na área educacional.
Em
segundo plano, são necessárias reflexões acerca da ação do Supremo Tribunal Federal
no caso proposto. Nesse panorama, compreende-se o julgamento da ADPF como mecanismo
previsto no próprio corpo Constitucional, de modo a servir como ferramenta para
que o judiciário, mediante provocação – neste caso, proposta pelo Partido
Democratas – verse soluções que determinem a constitucionalidade, ou a ausência
dela na ação em questão. Desta forma, tal processo é natural da Constituição e demostra
um aprofundamento da democracia, uma vez que traz à tona questões recorrentes,
muitas vezes a grupos historicamente excluídos, os quais as demandas, muitas
vezes são negligenciadas no campo legislativo, que se mostra omisso na promoção
de produções que deem voz a essas problemáticas que, no caso, estavam expressas
constitucionalmente através dos conceitos de “igualdade
de condições para acesso e permanência na escola”; “pluralismo de ideias”; e “gestão democrática do ensino público”. Nesse sentido, tal panorama é reforçado pelo
pensador Garapon, que expões a necessidade da ação dos tribunais como atores
que promovam a magistratura dos sujeitos que por via da autodeterminação não
possuem expressão suficiente para mudança de ainda arcaicos e rígidos manutentores
do poder político no país. Assim, observa-se que o Julgamento pelo Supremo
Tribunal Federal oferece uma promoção de garantias de direitos educacionais ao versar
como constitucional o sistema de ingresso universitário via cotas.
Ainda, é necessário
discorrer acerca da mobilização do direito no caso e sobre as consequentes
mudanças decorrentes da decisão. Nesse sentido, a decisão, primeiramente, de
promoção das cotas viera da Universidade de Brasília, uma vez lhe conferida
autonomia de dispor de certas questões referentes a sua gestão - art.
207 (CF, 1988) garante às universidades, entre
outras prerrogativas funcionais, a autonomia didático-científica
e administrativa, fazendo-as repousar, ainda, sobre o tripé ensino, pesquisa e extensão.-, em contraposto, o partido Democratas surge como
uma disposição contrária a essa prática, julgando-a inconstitucional. Nesse
sentido, o STF, entende que a medida é constitucional e, dessa forma, propicia
a expansão da promoção desta forma de ingresso em outras universidades do país.
Dessa maneira, McCann expressa a mobilização do Direito como as ações de indivíduos
e grupos de determinada luta social que conseguem por meio dessa devida
expressão no campo do Direito, assegurando ou pleiteando sua materialidade, tal
panorama promove, na visão do autor, um sentido de maior visibilidade que influência
as ações futuras com relação ao tema discutido. Esse panorama é elucidado também,
pelos pensadores Frankfurtianos: “as minorias étnicas e culturais se
defendem da opressão, marginalização e desprezo, lutando, assim, pelo reconhecimento
de identidades coletivas, seja no contexto de uma cultura majoritária, seja em
meio à comunidade dos povos. São movimentos de emancipação cujos objetivos
políticos coletivos se definem culturalmente, em primeira linha, ainda que as
dependências políticas e desigualdades sociais e econômicas também estejam
sempre em jogo.” Por fim, os efeitos das mobilizações travadas possibilitam a expansão da
promoção e garantia de direitos.
Dessa forma, cabe discussão da questão do pensamento abissal e a propiciação
do ecologia dos saberes aplicados a ADPF 186. Nessa continuidade, o pensamento
abissal é categorizado, de acordo com Sara Araújo, como a “inexistência” de
pensamentos e produções que aconteçam “do lado de lá” das premissas “modernas”
de conhecimento abarcadas por ideais eurocêntricos, de modo a construir uma
divisão - o pensamento moderno impõe e estabelece os limites de uma linha abissal
que divide o mundo entre o universo “deste lado da linha” e o universo “do
outro lado da linha”. Dessa maneira, a ecologia dos saberes constituiria
um panorama de quebra com essa visão monopolizada do Direito, promovendo a
agregação, a integralização de diversas lutas jurídicas, - tal como a promoção da inserção do sistema de
cotas como meio reparador e de promoção do acesso as universidades, tal ação promove,
consoante a Oscar Vieira, o benefício do “bem público da educação” pelos menos
favorecidos descritos no circulo histórico de exclusão; assegura a construção
de um ambiente que favoreça a dignidade humana e uma sociedade mais justa, além
de produzir conhecimentos que tragam o ponto de vista desses grupos, enriquecendo
o fazer cientifico. Dessarte, compreende-se a importância da construção de uma
ecologia dos saberes no campo jurídico e educacional como forma de ceifar o
pensamento abissal alicerçado por ideais limitantes e de base preconceituosa.
Depreende-se, portanto, que a decisão do Supremo Tribunal Federal pela Constitucionalidade
das cotas raciais nas universidades brasileiras fora de extrema pertinência para
garantia de direitos básicos a educação . Para tal análise foram abarcados, principalmente,
ideias dos pensadores Bourdieu, Garapon, MaCann, e Sara Araujo, que forneceram
base aos tópicos aqui discutidos. Destarte, compreende-se a importância da
decisão como um passo importante no caminho para a reparação e promoção da pluralidade
dos espaços universitários do país
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