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domingo, 20 de novembro de 2022

Ações afirmativas e o sim à democracia

        Ajuizada pelo Partido Democratas (DEM) a fim de sustentar a impugnação da política de cotas étnico-raciais alvitrada pela UnB, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 inferiu questionamentos referentes à atuação administrativa do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília, o qual ratificava a reserva legal de 20% das vagas aos estudantes pretos e pardos, bem como designava vinte vagas aos estudantes indígenas brasileiros. Sendo assim, a arguição imputada pelo DEM alegava que as cotas transgrediam um rol de fundamentos constitucionais, como, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana e, até mesmo, o direito universal à educação. Consequentemente, o Supremo Tribunal Federal, em consenso uníssono, deliberou o pedido inerente à ADPF 186 como improcedente. 

        Nesse viés, de acordo como enunciado pela Ministra Cármen Lúcia, as ações afirmativas simbolizam uma ferramenta que viabiliza a suplantação de um problema, o qual não só assola o indivíduo inoperante política e democraticamente, mas também anula sua titularidade de direitos como cidadão. Sendo assim, as cotas, no âmbito étnico-racial, possuem o escopo de fundamentar a democracia, bem como a igualdade material, afinal, para Cármen Lúcia: “Cidadania não combina com desigualdade. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação.”          A consolidação das ações afirmativas corroboram a diversidade e pluralidade na esfera acadêmica, tendo em vista que solucionam as dissonâncias sociais que reverberam na cronologia histórica. Dessa forma, cabe promover uma simbiose entre a premente necessidade de adoção das ações afirmativas e a conceituação do “espaço dos possíveis”, abstração proposta por Pierre Bourdieu que corresponde à insurgência de embates dicotômicos nas esferas argumentativas. A título de elucidação desse conflito, as quiméricas e equivocadas alegações inferidas pelo Partido Democrático – as quais declaram a nulidade de segregação das pessoas negras no Brasil e inocentam as ressonâncias do passado escravocrata demarcado pela brutalidade dos colonizadores brancos – são refutadas pela evidente ausência espacial de pessoas pretas no meio acadêmico e pela apartação profissional dos negros e indígenas nos serviços públicos, salientando a necessidade de criar mecanismos de integração democrática. Consequentemente, conforme o Ministro Ricardo Lewandowski pontua em seu voto, as ações afirmativas simbolizam a construção de mecanismos de inclusão das classes marginalizadas pela discriminação e pelo racismo: 


“É preciso, portanto, construir um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social. Um espaço que contemple a alteridade. E a universidade é o espaço ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais com relação ao outro e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea, aliás, consentânea com o mundo globalizado em que vivemos”. 

(MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI) 


        Já a “historização da norma”, máxima preconizada por Bourdieu, remete à adaptação do ordenamento jurídico às demandas sociais contemporâneas, visto que a Justiça Distributiva, reiterada por Ricardo Lewandowski, proporciona a superação das discrepâncias sociais inerentes na realidade fática por meio da concessão de oportunidades promovidas pela intervenção estatal. Como efeito, a tutela do Estado relaciona-se com a admissão de dispositivos jurídicos, como, por exemplo, a criação da Lei de Cotas, a qual possui ensejo no mérito da discussão do STF referente à ADPF 186. Além disso, cabe citar um trecho do voto de Lewandowski sobre a urgência em concretizar políticas que possibilitem o acesso ao ensino superior de jovens segregados pela conjuntura brasileira pautada no racismo: 


“Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.”

 (MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI) 


        Também ilustrando o exposto no Plenário, é mister citar a abstração de Garapon vinculada à “magistratura do sujeito”, ou seja, a amplitude da função atuante do Judiciário assume notoriedade e torna-se primordial em prover condições que dão ensejo à igualdade material, a qual atenua o estado que os grupos, subalternizados pelos estigmas raciais, são coercitivamente inferiorizados pela dominação histórica. Dessa forma, dada a inércia dos dispositivos legisladores e a nula elaboração de políticas públicas – as quais configuram a metamorfose dos desiguais em iguais e promovem à cidadania por meio do reconhecimento de direitos constitucionais – cabe conceber o protagonismo dos magistrados em fomentar a inclusão e mitigar a discriminação contra a população negra. 

        Do mesmo modo, cabe propor a “mobilização do Direito” de McCann como recurso resolutivo à inobservância de políticas tutelares que cerceiam o ostracismo das pessoas pretas no meio acadêmico, ambiente que edifica a autonomia da população negra por meio da lapidação intelectual e da transposição de vias acessíveis ao conhecimento e à Educação. Sob essa óptica, a tutela às demandas e anseios sociais representa um artifício para mitigar o pernicioso quadro demarcado pelas estruturas desiguais vinculadas ao racismo, problema imanente à realidade atual. Além disso, cabe enfatizar que a atuação autoritária e prepotente do Judiciário corresponde a uma premissa ilusória, sendo necessário converter esse prognóstico em uma perspectiva protetiva dos interesses da sociedade. Para exemplificar o pensamento de McCann, é pertinente reiterar uma parte do voto de Luiz Fux, afinal: “entendo, sem qualquer espírito corporativo, que o Supremo Tribunal Federal pode ser denominado o Tribunal de Defesa dos Direitos Fundamentais, tão intensa tem sido a sua tarefa na defesa das questões que afetam tanto a vida da sociedade, tanto a vida social e tanto a vida política” (MINISTRO LUIZ FUX). 

        A bifurcação dualista inerente à realidade contemporânea, de acordo com Sara Araújo e Boaventura de Sousa Santos, reflete uma supremacia setentrional em detrimento da depreciação dos grupos não-hegemônicos, os quais são segregados pela delimitação de uma linha abissal que reforça, por meio do ordenamento construído pelo Direito, a conotação legal que invalida as vicissitudes inferiorizadas pela primazia do norte. Nesse viés, a Epistemologia do Sul, aliada à Ecologia de Justiça, não só exibe visões de mundo divergentes – que suplementam, de modo integrante, reformas à hegemonia dos dominantes – mas também renuncia as monoculturas que obstam a expansão do cânone judiciário. A título de elucidação, as monoculturas definidas por Sara Araújo são enumeradas da seguinte forma: monocultura do rigor do saber, monocultura do universal, monocultura da produtividade, monocultura da naturalização das diferenças e monocultura do tempo linear. Consequentemente, os tópicos supracitados são a gênese da concretização de uma monocultura jurídica, a qual corrobora, por meio da racionalidade e da objetividade, a negligência aos direitos locais e às proteções jurídicas. 

        Sendo assim, a ADPF 186 simboliza um marco da democracia brasileira, tendo em vista que a adoção das ações afirmativas, no tocante à vertente étnico-racial, dá ensejo à construção dos ideais de inclusão dos grupos sociais marginalizados pela discriminação, pelo racismo e pela restrição seletiva do Direito enquanto técnica impessoal e formal. Logo, a ecologia dos saberes legitima as demandas exigidas pelos conjuntos não- hegemônicos, repelindo as monoculturas e validando a notoriedade da oferta de condições às populações pretas, pardas e indígenas em materializar o ingresso às instituições de ensino superior. A ecologia dos saberes – abstração vinculada à hermenêutica diatópica e ao ambíguo papel do Direito em, por outro lado, fomentar meios processuais de efetivar a pluralidade e o reconhecimento dos indivíduos marginalizados pelo sistema de dominação dos privilegiados – proclama a natureza principiológica da isonomia, a qual ratifica a concreção da igualdade material a todos, avaliando as pontuais distinções sociais e culturais a fim de superar as ressonantes desigualdades vinculadas ao nefasto passado brasileiro demarcado pela escravidão negra e pela opressão racial no Brasil. 

        Em suma, a implementação das ações afirmativas nas universidades brasileiras não só representa um artifício de consolidação da igualdade material e de incremento à democracia brasileira, mas também um recurso tutelar consonante aos direitos dos grupos marginalizados pelas desigualdades raciais e socioeconômicas. Além disso, cabe efetuar uma menção ao Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito na corrida presidencial de 2022, tendo em vista seu protagonismo em instituir o Estatuto da Igualdade Racial, mecanismo que concebeu políticas de propagação da equidade por meio da tutela das matrizes culturais e religiosas: 


“A lei de cotas é o pagamento de uma dívida que o Brasil tem de 350 anos de escravidão. Ela permite que a gente recupere a possibilidade de enfrentar o racismo, o preconceito e a marginalização. De dar ao povo periférico a oportunidade de estudar e ter direitos. E você não sabe o prazer que eu tenho de ter sido um presidente sem diploma universitário que tirou a universidade brasileira de 3,5 milhões de estudantes para 8 milhões” 

(LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA).


Nome: Maria Yumi Buzinelli Inaba 

Turma XXXIX - 1° ano Direito - Matutino

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