A racionalidade pode, em determinados contextos, ser o regente equivocado da interpretação da existência. Na busca pelo pragmático, ela almeja localizar e identificar fatores lógicos – os quais, por essência, podem levar a imediatismos e à superficialidade. Para otimizar a projeção do postulado, tomemos como exemplo o corpo humano. Pelo viés da lógica que almeja ser racional, ele pode – sem grandes dificuldades – ser interpretado unicamente como um conjunto sistematizado de órgãos e mecanismos funcionais integrados e essenciais para a vida. Contudo, a partir da perspectiva concreta (isto é, não somente racionalmente lógica), é notório que ele representa fatores que estão situados além dos domínios restritos de uma abordagem simplista, como, por exemplo, a própria essência etérea da alma.
Essa óptica restrita é facilmente expressa pela doutrina social e filosófica do Positivismo. Por ele, entende-se como um fenômeno metodológico e criterioso de interpretação, o qual tem como um dos princípios básicos a busca pela racionalidade em todas as instâncias – ainda que isso culmine no obscurecimento de parcelas essências do objeto de estudo. Ademais, essa doutrina possui a pretensão de, a partir dos fatores já mencionados, estipular condições “seguras” para o progresso social efetivo. Sob o risco de o leitor mais desatento já estar inserindo o título de “filiado à doutrina positivista” na sua biografia do Instagram, em virtude da maneira pela qual as informações foram apresentadas, reformulemos a visualização da perspectiva por meio de outra vertente (igualmente pertinente). Imaginemos uma receita de bolo intitulada de Bolo de chocolate mais gostoso que tem: o segredo pra conquista a muié. Os ingredientes necessários, bem como os procedimentos de realização do processo, são expostos de forma nítida (escrita), sintetizada (sem grandes complexidades), organizada (antes os requisitos e, em seguida, os modo de preparo) e, lógica (baseada em um padrão racional). O ato de seguir estritamente os procedimentos indicados tal como postos resulta, na melhor das hipóteses, em um bolo semelhante ao proposto em primeira instância – atendendo, ou não, à expectativa de ser o segredo para conquistas amorosas. Em contrapartida, o ato responsável pela adoção de procedimentos paralelos e, portanto, orientados pelo lado criativo e revolucionário pessoal pode culminar em, pelo menos, uma das três seguintes possibilidades: (I) algo intragável, (II) uma bomba nuclear, ou (III), na mais extraordinária raridade, uma descoberta gastronômica sublime. Tendo como eixo central o exposto, é preferível a (quase) certeza de um bolo bem sucedido, ou o risco eminente de produção de um artifício dos caos capaz de dizimar cozinhas? Para este humilde autor, a solução é veementemente óbvia.
Para além disso, retirando o quadro do âmbito metafórico para o concreto, o Positivismo, enquanto um fenômeno de regulação e orientação sociais, é o lábaro de progressos a partir da imposição de padrões, ou condicionantes sociais, os quais, em nome do zelo pelo bem coletivo – a sociedade –, devem ser contemplados invariavelmente. O principal subterfúgio que sustenta essa conjuntura de dever é a busca pela coesão social ou, pela configuração do exemplo desenvolvido, a produção massificada de bolos igualmente deliciosos que promovam em todos aqueles que os degustem sensações idênticas de conforto, autorrealização e felicidade. Ou seja, os meios de ação são os mesmos em prol de que os efeitos também sejam os mesmos e, assim, de que a homeostase do sistema seja regulada e assegurada.
A coesão simboliza o mais genuínos dos objetivos lógicos, na perspectiva positivista, justamente devido ao fato de culminar na articulação de indivíduos que, mesmo sendo naturalmente distintos, são convertidos compulsoriamente em iguais a partir do conjunto em que estão inseridos. Por serem iguais, as diferenças ideológicas e demais conflitos entre cada um deles são praticamente inexistentes. O equilíbrio flui de modo mais facilitado e, como conseguinte, os donos das confeitarias especializadas na venda de bolos irresistíveis e conquistadores não se preocuparão com mudanças na programação ou, em palavras mais adequadas para este contexto, alterações no cardápio.
Óbices reais e determinantes emanam, com o decorrer do tempo, de alterações subversivas no desenrolar da existência. Bolos memoráveis e extraordinários começam a surgir e, assim, a tão estimada estabilidade começa a ruir. Seria ingênuo e, até mesmo, irracional aguardar pelo contrário. Padrões de conduta – sejam eles os expressos pela moral, pela busca pela felicidade ou pela realização do trabalho – não simbolizam mecanismos eficientes de regulação social precisamente por serem problemáticos e incompletos da sua própria essência. Considerá-los e defendê-los, a partir e ao lado do Positivismo, seria – no mínimo – contraditório, por não ser uma atitude lógica e racional. O bem coletivo assenta-se justamente sobre o respeito àquilo que garante a diversidade: a pluralidade. Zelar pelo oposto – a padronização – consiste na forma mais eficiente de deturpação do respeito pelo indivíduo e, por integrá-lo, pelo coletivo.
A harmonia social encontra-se no ato de salvaguarda da essência humana, o qual, por excelência, implica a noção de que ela não é perdida com a inserção da pessoa no corpo social. Posto que, antes mesmo de ser parte de determinado todo (ou mesmo um produtor especializado de bolos), o indivíduo é humano e – como tal – merece ser submetido a tratamento digno (fato este que abrange, também, o respeito à sua subjetividade). Ao aceitar a predominância da padronização, a esperança do surgimento de inovações é dissolvida logo no anseio por melhorias, assim como a possibilidade de descoberta de estonteantes maravilhas “bolásticas”. Somos nós os responsáveis pela escolha dos efeitos que desejamos.
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