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sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Carta-socorro sobre o domínio

 Lindrin, 6 de outubro de 2020 

Caro leitor, 


Isso é uma carta de desabafo.  

Não sei quem você é, nem como essa carta chegará em suas mãos, mas considerarei que você me entende e que está aberto a ler as minhas angustias sobre a vida. 

Hoje eu passei por mais uma daquelas situações insuportáveis onde taxaram o meu corpo e me cobraram sobre como devo me conduzir frente a ele, ouvi mais um daqueles comentários ridículos de como meu corpo não é o ideal (e que ideal seria esse? A Barbie?) e que precisava feminizar ele. Meu pai me disse que eu devia agir como menina, e falou que talvez, esses comentários, eram só para eu aceitar a importância da minha imagem frente ao mundo. 

Fico impactada com isso, eles têm um valor bizarro de que o corpo perfeito é de plástico e despejam isso em mim - um indivíduo na sociedade que está fadado a ser vítima de uma ação social – como se eu fosse obrigada a seguir tal valor idealizado.   

O que acontece é que às vezes, eu acredito que sou mesma obrigada a seguir tais padrões, eles emergem no mais fundo da nossa mente e nossa felicidade acaba se tornando inconscientemente fruto da transformação social que nos impõe. 

Uma vez eu li em algum lugar que o Max Weber estudava esse lance de ação social, que para ele uma civilização específica e seus indivíduos interpretavam o mundo conforme valores e modelos culturais daquela comunidade, e que quando duas ações sociais se juntavam surgia a relação social. Porém, fiquei pensando comigo, não estava na hora de alguns valores mudaramnão estava na hora de formar relações sociais saudáveis? Sério, não aguento mais esses julgamentos ridículos. E como se não bastasse todo o domínio da comunidade sobre meu corpo, sua forma e o que eu faço dele, descobri que o Estado também o domina, e acredite ou não, até esteticamente. 

Eu estava estudando para uma matéria que ia começar na faculdade e estava vendo o Código Civil quando me deparei com o art. 13, nele estava escrito nas seguintes palavras um dos maiores absurdos que já li “é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”, você deve estar se perguntando o que pra mim é tão absurdo já que manter a integridade física é um bem necessário, mas vou te contar o que eu acho absurdo: do modo que está escrito, esse artigo simplesmente deixa claro que não posso alterar o meu corpo segundo os bons costumes, ou seja, eu não posso fazer nenhuma alteração que me faça mais feliz, porque a sociedade acha errado. Como isso? O mundo todo me domina e impõe seu valor ao meu corpo e como quer que ele seja, e , quando eu quero mudar ele, se contrariar o que os “bons costumes” eu ainda assim não posso mexê-loA sociedade me domina, o Estado me domina e eu vivo um constante estado de indefesa onde não posso fazer nada pra que esse quadro seja revertido. 

Vejamos se você entende o que eu penso, eu estou em um constante estado de legitimidade porque eu simplesmente me disponho a ter obediência frente a essa dominação, porque socialmente e legalmente não quero perder meus direitos, meus afetos e minhas relações. 

Estaria eu, fadada a seguir previsibilidades legais que me dominam além de suportar valores sociais que me desmoronam? 

Não sei mais o que fazer, como eu disse acima, isso é um desabafo e espero que você o compreenda. 

Saiba que estarei disposta a manter uma linha de conversa, você tem um endereço sem nome atrás desse papel, pode me responder sempre que quiser, ficarei feliz de saber que alguém que não segue tais valores pode me auxiliar nessa difícil jornada de questionamentos e angustias. 

Atenciosamente,  

Alguém que procura ajuda. 


Isabel Borderes Motta - 1° ano - Noturno

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