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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Lutas sociais e o ativismo judicial: a tutelarização dos direitos em caso de conflitos ou omissões


    Atualmente, é colocado em pauta em grande parte das discussões políticas, assim como nos noticiários e meios de comunicação sensacionalistas, o papel de atuação do poder Judiciário no âmbito jurídico nacional. Apoiando-se em uma ideia de ditadura do Judiciário, muitas fontes acusam seus ministros, principalmente os das varas superiores, de estarem extrapolando os limites do seu campo de atuação e interferindo em funções dos outros poderes, agindo como legisladores ao invés de juízes. Por outro lado, temos aqueles que defendem a ideia de um ativismo judicial, na perspectiva de cumprimento do Judiciário de seu papel constitucionalmente atribuído de intérprete da Constituição e protetor dos direitos fundamentais.

            Analisando-se a atuação do Supremo Tribunal Federal nos últimos quinze anos, é inegável a existência de um protagonismo judicial no Brasil em relação à decisão de questões jurídicas fundamentais. Para citar alguns breves exemplos, questão da legalização da antecipação terapêutica do parto em caso de fetos anencefálicos, o reconhecimento da união homoafetiva, a proibição de doação de pessoas jurídicas a financiamento de campanha, foram todas decididas pelo Judiciário e relacionadas a direitos constitucionais, mas, acima disso, todas decisões ligadas ao desenvolvimento do campus social. Nesse sentido, assim como a atuação crescente do Judiciário não passa despercebida, também não se deve desconsiderar a atuação dos grupos sociais responsáveis por levar tais causas e conflitos ao âmbito dos magistrados. A movimentação social apresenta uma intrínseca relação com o ativismo judicial, que muitas vezes é ignorada pelas correntes políticas, quando, na verdade, deveria ser o foco da maioria delas, tendo em vista a posição especial e soberana que o povo brasileiro ocupa no Estado Democrático de Direito estabelecido pela Constituição de 1988.

            Antoine Garapon, jurista francês, defende em sua obra ‘’O juiz e a democracia’’ precisamente o enfoque na relação entre os membros da sociedade e os trabalhos do poder Judiciário, nos rumos do fenômeno do ativismo judicial. O autor atribui o avanço da atuação do Judiciário a três razões principais: o desenvolvimento do neoliberalismo e a crise do Estado de Bem-Estar social que se desenrolou na Europa; o processo político do pós-guerra, que foi marcado pela ampliação das garantias constitucionais e de acesso à justiça; e a crise da representação político-partidária. Em uma comparação singela por si só já se nota que todos esses fatores se mostram presentes no cenário político social brasileiro. É inútil negar que o país enfrenta uma crise de representatividade em seus órgãos legislativos, exposta pela quantidade cada vez maior de eleitores aptos que optam por não votarem ou anularem seu voto a cada turno eleitoral. Também é inúltil negar o desenvolvimento cada vez mais acíduo da economia capitalista, que não encontra suporte em políticas públicas capazes de preparar a população e estruturá-la para lidar com os impactos desta expansão, o que em parte se deve precisamente à crise de representatividade já mencionada. Ao mesmo tempo, não se pode negar o caráter de defesa da democracia e de direitos fundamentais presente na Constituição vigente, que reflete as lutas sociais a favor da dignidade humana e da conquista de direitos que reverberam na sociedade desde o processo de redemocratização que ditou o processo constituinte de 1987.

            O resultado desse processo de fatores seria, de acordo com Garapon, a formação de indivíduos cada vez mais independentes. A destruição de um modelo de Estado hierárquico e autoritário e o florescimento de um Estado democrático abrem espaço para a concretização formal da isonomia entre os sujeitos. Tal isonomia se expressa em suas qualidades de participação política social abrangente, mas também acaba por tornar os indivíduos, de certa forma, desamparados. Dessa forma, Garapon afirma que, nos âmbitos dessa igualdade, os membros da sociedade tendem a recorrer aos juízes quando necessitam resolver conflitos entre seus direitos. Os magistrados, dessa maneira, atuariam tutelarizando os direitos interiorizados por esses sujeitos. A magistratura do sujeito seria, portanto, um fenômeno natural da sociedade moderna, regida pelos princípios democráticos de liberdade e igualdade. Nas palavras do próprio autor ‘’o preço a ser pago pela liberdade é o maior controle do juiz, a interiorização do direito e a tutelarização de alguns sujeitos”.

            Tal perspectiva pode parecer, a depender da interpretação, paternalista para com os membros das sociedades contemporâneas e um pressuposto para uma atuação ilimitada do Judiciário, uma perspectiva abordada, por exemplo, pela jurista alemã Ingeborg Maus, quando esta escreve em sua obra ‘’Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’ ‘’, que, quando a justiça ascede ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social. Porém, de fato, o papel do poder Judiciário é tradicionalmente e, no caso do Brasil, constitucionalmente, o de amparar e resolver conflitos, de acordo com a interpretação da lei. Como afirma o sociólogo Pierre Bourdieu, é no ambiente jurídico, estruturado pela sua capacidade de racionalização e universalização das normas, que os conflitos entre os campus sociais encontram espaço para serem ponderados. O espaço dos possíveis, isto é, as possibilidades previstas pela legislação orientam essas ponderações, ditando, segundo os preceitos estabelecidos pelo poder constituinte, o que pode ser realizado, concretizado, reconhecido e legislado nos parâmetros do ordenamento jurídico brasileiro.

É precisamente neste ponto que a ideia de um poder Judiciário que escape do controle social e aja de maneira incondicionada, criando uma espécie de ditadura, perde a sua força. Pois, como apontado, a atuação do Judiciário é apenas o cumprimento do papel a ele atribuído pelos mecanismos constitucionais vigentes na sociedade brasileira hodienarmente, balizada pela legislação. Não só isso: ela é a expressão dos conflitos que surgem em meio ao corpo social, uma expansão jurídica do desenvolvimento da sociedade, a tutelarização dos direitos dos cidadãos que a compõem.

Nesta perspectiva, é muito importante também se discutir a dupla capacidade de expansão e de preservação de direitos que o Judiciário apresenta, tão requisitada e produtiva no ordenamento brasileiro e no âmbito social. Como afirma Sorj, a Constituição incluiu uma série de direitos programáticos mas irrealizáveis no contexto societário imediato. Isso não significa que esses direitos não existem, mas sim que exigem empenhos por parte do Estado para que sejam concretizados de modo democrático, ou seja, para que sejam garantidos a todos. A interpretação constitucional, atribuição do Judiciário, abre a possibilidade de expansão de compreensão de direitos, no sentido da conquista e positivação de novo direitos, além de interpretação de normas que vizem assegurá-los. Concomitantemente, essa mesma interpretação com base na Constituição de 1988 garante a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais, certificando-se de que eles sejam preservados no ordenamento e na realidade social do modo mais abrangente possível. É nesse seara que é possível afirmar, como faz o ministro Luiz Roberto Barroso, que o Judiciário preserva em sua funcionamento uma independência relativa da movimentação política, pois, ao mesmo tempo em que pode ser influenciado pelas correntes políticas recorrentes, que carregam em si os ecos das lutas sociais, também atua de maneira a proteger e preservar os príncipios constitucionais. É nesse sentido também que se adequa a habilidade historização da norma do poder Judiciário, ou seja, a sua capacidade de, por meio dos mecanismos interpretativos, permitir que as normas do ordenamento acompanhem o desenvolvimento social, de modo a impedir que a Constituição ou demais leis permanecem estacionadas em um determinado entendimento vinculado a um período sociohistórico diverso do encontrado atualmente, sem contudo, prejudicar a identidade constitucional.

Por motivos de maior esclarecimento, mostra-se necessário demonstrar todas essas características apontadas do poder Judiciário assim como a sua relação direta com os movimentos e lutas sociais faticamente, não restando melhor maneira de fazê-lo senão analisando uma das decisões do Supremo Tribunal Federal. A escolhida, a Ação Direta de Insconstitucionalidade 4.277, trata da questão já citada anteriormente do reconhecimento da legitimidade das uniões homoafetivas dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

Considerada um marco de conquista no campo dos direitos fundamentais, a ADI 4.277 foi levada ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2011, sob a relatoria do ministro Ayres Brito. Sua intenção principal era pedir pela interpretação com base na Constituição do artigo 1.723 do Código Civil, que versa sobre a união estável, visando que a união estável homoafetiva possuísse o mesmo grau de proteção e reconhecimento jurídico que a união heteroafetiva. O julgamento foi acompanhado com muito atenção e expectativa, não apenas da comunidade LGBTQIA+, como também por todo o corpo jurídico brasileiro. A decisão proferida pelo STF não somente acarretaria a positivação de um direito há muito requerido por uma parcela da população brasileira historicamente oprimida, isto é, o direito à formação de uma unidade familiar juridicamente protegida sem diferenciações com base em critérios de sexualidade, mas também estabeleceria um parâmetro importante a respeito dos mecanismos de interpretação constitucional. A grande polêmica em torno da situação, colocando à parte as questões religiosas ou moralistas, era quanto a interpretação expansiva de um dispositivo restrito, já que os termos ‘’homem e mulher’’ se encontravam explícitos no artigo 1.723 do Código Civil, levantando questionamentos acerca dos limites da interpretação que o Supremo poderia realizar nesse caso.

A decisão do plenário foi unânime a favor do reconhecimento da legimitidade da união homoafetiva. O voto de Ayres Brito, o ministro relator, retomou diversos princípios constitucionais e direitos fundamentais assegurados pela Constituição, tais como a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade e a vedação da discriminação em razão de sexo ou qualquer outra natureza, além de afirmar que a Constituição não faz diferenciações entre modelos familiares, assegurando a todos eles, independentemente da sua formação ou origem, a mesma proteção estatal especial. O ministro relator ainda ressaltou que a presença da dualidade explicíta de sexos no artigo da união estável se deve tão somente a um reforço normativo à ideia de igualdade dentre homens e mulheres, não podendo ser alencado como um motivo para impedir o reconhecimento dos direitos familiares dos membros da comunidade LGBTQIA+.

Nesse julgamento, além do entendimento dos ministros, também é preciso destacar a ampla participação dos grupos sociais. A conjunto de amicus curie contou com nada mais, nada menos, do que quartorze insitituições diferentes. Todas elas apresentaram seus pareceres a respeito da questão, contribuindo consideravelmente para a unanimidade da decisão atingida pelo corpo de magistrados. A relação entre o ativismo social e potência dos movimentos sociais não poderia estar mais clara nesse caso, em que sujeitos buscaram Judiciário a fim de positivar um direito pelo qual lutavam constantemente, relacionado à dignidade e à concretização da igualdade, não somente formal, mas também material. A sua movimentação social refletiu no campus judicial, incentivando o Supremo Tribunal Federal a realizar o processo de historização da norma que tratava da união estável no Brasil, interpretando-a, dentro e com base nos limites constitucionais (espaço dos posssíveis), de modo que ela esteja de acordo com os anseios da sociedade contemporânea. É possível se falar até mesmo da realização de um processo de antecipação do Direito nesse caso, já que o Judiciário o expandiu a posteriori para assegurar um direito que, a priori, não estava positivado de modo eficiente no ordenamento.

Assim, através dessa exposição teórica e análise de decisão judicial concreta, busca-se solidimentar a ideia de que ativismo judicial não se configura como uma característica ditatorial. O papel que hoje o Judiciário representa é aquele que lhe foi atribuído pelo poder constituinte de 1987, ou seja, o de julgar e interprertar as normas ordinárias e situações fáticas de acordo com os preceitos constitucionais. Dentro dos limites do espaço dos possíveis, o campus judicial se abre para receber em si as lutas sociais e conflitos de direito, buscando através da tutelarização dos sujeitos, garantir que os preceitos assegurados pela Constituição prevaleçam na realidade empírica. O Judiciário não extrapola suas funções, apenas cobre as lacunas interpretativas que o Poder Legislativo deixa, seja por razões práticas ou cincusntanciais. A atuação dos três poderes não se mostra independente, mas sim interdependente, relacionada e cooperativa, de modo a sempre buscar a manutenção da harmonia social e da ordem democrática. Em meio ao mar profundo que se mostra ser o processo de construção de um Estado Democrático de Direito, os movimentos sociais devem navegar sempre avante e acima, sendo o ativismo judicial, o barco formal e racionalizado através do qual essas vozes podem encontrar a segurança sobre as marés fortes e correntes plurais da vida política para seguir navegando.

Nome: Isabela Maria Valente Capato

R.A: 221221468

1ᵒ ano de Direito - período matutino


           

 

 

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